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São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 2003

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cultura e lazer

Isolada e distante, São Paulo já foi um vilarejo de língua indígena, tedioso e sem graça


Uma das poucas diversões oferecidas à população no começo do século 18 eram as "touradas", em que animais trazidos do Paraná perseguiam escravos na praça da Legião, hoje República. Os bordéis tiveram papel importante na sofisticação dos barões do café, ao oferecer produtos de luxo só encontrados no exterior


JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Os moradores de São Paulo deviam morrer de tédio nos 250 primeiros anos da cidade. A serra do Mar era um obstáculo que dificultava o contato com a cultura aportada pelos portugueses. Os paulistanos falavam apenas tupi, o que de quebra representava uma barreira linguística.
Até o final do século 18, não havia na cidade escravos negros, o que empobrecia a miscigenação na música e na culinária.
No período colonial, cidades como São Luís, Recife, Salvador ou Rio de Janeiro tampouco foram centros de ebulição de cultura e lazer. Mas com certeza eram bem mais movimentadas que essa espécie de aldeia de Piratininga.
Alcântara Machado compilou inventários paulistanos e se assustou com os pouquíssimos livros no patrimônio dos mortos. Lia-se pouco ou quase nada. A barreira linguística era tão cruel que, certa vez, para conversar com o representante da coroa, fazendeiros paulistanos, monoglotas no idioma dos índios, precisaram do auxílio de um intérprete.
É provável que as únicas festividades públicas fossem de caráter religioso. Décio de Almeida Prado cita a leitura interpretada de poemas de José de Anchieta em procissões no século 16.

Cidade de barro
Na virada para o século 19, "São Paulo não passava de uma calma aldeia (...), estendendo-se pouco além dos estreitos limites do Tamanduateí e do Anhangabaú. A pequena população, de no máximo 20 mil pessoas, dormia cedo (...). Uma vila sem graça, uma cidade de barro, ponto de entroncamento de tropas, local de partida, não de chegada", escreve a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz.
O historiador Jean Marcel Carvalho França lembra que as primeiras atas da antiga Câmara pouco falam de festas e de como regulamentá-las. Mas os paulistanos conheceram muito cedo a boa música polifônica, com as composições de André da Silva Gomes (1752-1844), redescobertas e restauradas pelo musicólogo Regis Duprat. Gomes foi mestre-de-capela da Sé e, desde 1797, maestro titular de uma banda. As bandas faziam o que então se chamava de "música de barbeiros".
Uma boa surpresa em 1763: era aberta na rua São Bento uma Casa da Ópera, em verdade teatro também utilizado para espetáculos líricos. Sua criação foi questão controversa porque favoreceria a corrupção dos costumes, segundo debate da Câmara mencionado por Sérgio Casoy. Ele também relata, em livro ainda inédito, que a colônia conheceu os dramas líricos de Niccolò Jommelli, napolitano comissionado pela corte de Lisboa. Uma outra casa, o Teatro de Ópera, seria aberta em 1795, no Pátio do Colégio. A música profana saía de vez da clandestinidade.
A corte se transferiu para o Rio em 1808. Irradiou modismos e efeitos culturais para as Províncias, como a importação dos primeiros pianos ingleses e a sofisticação da música de produção doméstica. Em 1827, era aberta a Faculdade de Direito, criando um público com maiores demandas.
É quando a vida cultural paulistana começa de verdade.
Faltavam, no entanto, espaços públicos em que o lazer e a cultura pudessem ser praticados. O atual jardim da Luz foi aberto em 1825, como uma mistura de reserva botânica e jardim zoológico.
Além dele, havia apenas a atual praça da República, que se chamou praça da Legião, por ser reservada a exercícios militares, e, em seguida, campo dos Curros. Arquibancadas construídas em 1817 atraíam o público interessado em "tourada". Em verdade, touros caçados no Paraná corriam atrás de escravos, segundo os naturalistas bávaros na missão tropical Spix e Martius.
São Paulo então já se expandia. A várzea do Carmo, atual parque Dom Pedro, tornou-se o ponto de encontro dos mais pobres e lascivos. Em 1822, a Câmara proibiu que, nas mesmas águas do Tamanduateí das lavadeiras, homens mais ousados nadassem nus. Os primeiros trajes de banho seriam vendidos em 1868.
A relação cultural entre rio e lazer ficaria bem mais nítida entre os paulistanos só por volta de 1890, quando os clubes de classe média se instalaram, com ênfase em esportes aquáticos. O Germânia, atual Pinheiros, ficava às margens do rio de mesmo nome. Não que o clube tenha mudado de lugar. Foi o rio que, com seu novo traçado, distanciou-se.
Com o São Paulo e o Paulistano, o Germânia foi um dos grandes clubes no início do futebol, cujos campeonatos começaram a ser disputados em 1902 e que só bem depois se tornaria também um esporte para o paulistano pobre.

Samba paulista
Há muito poucas referências bibliográficas sobre a diversão do paulistano mais humilde no século 19. O historiador Elias Thomé Saliba acredita que há muito a ser feito. Fala-se pouco, por exemplo, do nascimento do samba paulista em Bom Jesus do Pirapora, onde Oswald de Andrade presenciou o batuque na sequência de cerimônias de devoção religiosa.
Alcântara Machado localizou a primeira revista erótica publicada em São Paulo, que se chamava, não se sabe por qual razão, "O Pensador", em lugar de "O Nu Piratiningano", um nome para a época bem mais apropriado.
São Paulo se põe em sintonia com os modismos internacionais. O teatro e a ópera são canal privilegiado dessa profusão de novos conteúdos. Em 1864, no local em que hoje estão os fundos da catedral da Sé, é aberto o Teatro São José, destruído por um incêndio em 1898. Em 1873, viria o Teatro Provisório, na rua Boa Vista. O Politeama, na avenida São João, surgiu em 1892. Em 1908, foi a vez do Teatro Colombo, no largo da Concórdia, e, em 1911, a apoteose com o Teatro Municipal.
Foi no Municipal que, em fevereiro de 1922, ocorreu a Semana de Arte Moderna. Existe a semana que aconteceu e a semana que sobreviveu no imaginário da elite paulistana. O historiador Carvalho França está entre os que afirmam que a evocação do evento reforçou a idéia de que São Paulo, cidade então pequena, era também capaz de produzir idéias.
O ensino da música se profissionalizava em alto estilo com a abertura, em 1904, do Conservatório Dramático e Musical. Funcionou inicialmente na rua Brigadeiro Tobias. Em 1909, através de doações e loterias especialmente criadas, foi adquirido o prédio da avenida São João que ainda o abriga, diz o musicólogo Amaral Vieira.
A historiadora Margareth Rago elabora para a época uma tese consistente e original: os barões do café refinaram-se nos prostíbulos de luxo, em que a cultura gastronômica era patrocinada pelas sofisticadas cafetinas européias. O bordel oferecia sexo, mas também oferecia ceias com bebidas das boas adegas das casas.
Mais tarde, na atual praça Ramos de Azevedo, a Rotisseria Sportsman democratizou a alimentação de bom gosto. Quanto aos salões de idéias na tradição parisiense, funcionava na Vila Mariana a Vila Kyrial, com conferências e apresentações patrocinadas por um anfitrião e mecenas, o senador Freitas do Valle.
Foi também na belle époque paulistana que, em 1896, surgiu o francês Georges Renouleau. Em 1º de agosto daquele ano, ele fez para o governador Campos Salles a primeira sessão do cinematógrafo inventado pelos irmãos Lumière.
O cinema surgiu como o circo. Era ambulante. Até que, em 1907, o espanhol Francisco Serrador se fixa na cidade e abre na av. São João o Bijou Théâtre, primeiro ciema sedentarizado de verdade.
E o Carnaval? As primeiras carruagens enfeitadas teriam desfilado na cidade em 1854. Três anos depois, surgiram os primeiros bailes de máscaras -influência veneziana e carioca. O corso da av. Paulista começou em 1892. Mas só em 1914 desfilou o primeiro embrião de escola de samba, o Grupo Carnavalesco da Barra Funda. Detalhe: até 1921, só homens eram autorizados a desfilar.
O rádio demorou a chegar a São Paulo. A primeira transmissão ocorreu no Rio em 1922. Mas só em 1926 é que os paulistas passaram a receber os sinais da Educadora Paulista. Em 1928, foi a vez da Record, em 1934, a da Difusora e, em 1937, a da Bandeirantes.
Em 1950, quando surgiu a televisão, São Paulo já estava com 2,2 milhões de habitantes. A escala demográfica já era mais que suficiente para que o entretenimento funcionasse como mercado. É, por enquanto, onde ainda estamos.


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