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indústria
Eixo fabril é vestígio da cidade que se apaga
EDNEY CIELICI DIAS
DA REDAÇÃO
São Paulo do presente
consome a cidade do passado. O seu espaço urbano já foi descrito como um palimpsesto, um pergaminho no
qual se escreve e que depois será
apagado e reaproveitado, na imagem usada pelo professor de história da arquitetura Benedito Lima de Toledo no livro "São Paulo:
Três Cidades em Um Século".
Nesse processo de reescritura
urbana, identificam-se heranças
de um passado mais recente que
estão em mutação -o que redefine o papel que exercem na cidade.
Um desses legados está no entorno das vias férreas que cortam
os primeiros bairros industriais
-Lapa, Brás, Bom Retiro, Mooca, Ipiranga, por exemplo.
O caminho fabril estabeleceu
uma barreira com poucas transposições entre a área mais rica e
mais bem servida de serviços públicos -a região central-sudoeste- e as zonas norte e leste.
Com a perda de indústrias, o
antigo eixo em torno das ferrovias
acumulou grandes construções
sem uso e áreas desocupadas, mas
ainda permanece como marco divisório da cidade. Um reflexo disso é o afunilamento dos deslocamentos das zonas norte e leste no
centro, como aponta o urbanista
Kazuo Nakano, do Instituto Pólis.
Segunda fundação
"A São Paulo que se vê pela janela é a cidade do século 20", diz o
secretário municipal de Planejamento Urbano, Jorge Wilheim,
74, em seu gabinete no edifício
Martinelli, justamente o primeiro
arranha-céu paulistano, de 1934.
A despeito da condição geográfica privilegiada -uma confluência de caminhos, como bem sabiam os jesuítas e os bandeirantes-, a cidade teve três séculos de
pouca relevância econômica.
A São Paulo de hoje é produto
do que se pode chamar de "espetáculo do crescimento" impulsionado pelo café e pela indústria. A
população de meados do século
19, de feição portuguesa, indígena
e negra, transformou-se rapidamente. Em 1893, mais da metade
dos moradores eram imigrantes
europeus, com predomínio de
italianos. De 1900 a 2000, a população multiplicou-se 43 vezes.
Em um contexto de capitais disponíveis e de grande demanda, a
indústria cresceu. As primeiras
fábricas, em geral alimentícias e
de tecidos, margeavam as ferrovias -notadamente a Santos-Jundiaí, que escoava o café.
Nos anos 50, com o declínio do
transporte ferroviário, as fábricas
passam a se instalar ao longo das
rodovias -ocorre uma forte industrialização na Grande SP.
De 1955 a 1980, o ciclo industrial
se completou com as indústrias
automobilística, metalúrgica, química e eletrônica, entre outras. A
capital se tornou o principal pólo
industrial da periferia do capitalismo, como destaca o secretário
municipal de Desenvolvimento,
Marcio Pochmann, 41.
A partir dos anos 80, esse perfil
produtivo se modifica. Saem fábricas intensivas de mão-de-obra
(têxteis, alimentícias, por exemplo) e entram empresas intensivas
de capital (financeiras, tecnologia
da informação, logística), com
pessoal qualificado e melhores salários. Nessa nova realidade, as indústrias passam a se inserir pulverizadamente na trama urbana.
Clarice Messer, diretora da Federação das Indústrias do Estado
de São Paulo, pondera que a perda de fábricas não é algo necessariamente ruim. "Não tem sentido
concentrar a produção em uma
só região. Os centros de decisão
estão na capital e não poluem."
Novos usos
O eixo industrial ferroviário se
tornou obsoleto durante a segunda metade do século 20. O complexo Matarazzo da Água Branca
-o primeiro parque industrial
do país- é desativado e quase inteiramente demolido. Entre outros casos, a fábrica da Antarctica
na Mooca -instalada desde 1904
no local onde até então havia funcionado a antiga Cervejaria Bavária- é fechada em 1995.
Ocorrem iniciativas de reaproveitamento de prédios industriais. Um marco disso é o Sesc
Pompéia, inaugurado em 1982. O
projeto da arquiteta Lina Bo Bardi
criou um centro de lazer e cultura
em uma indústria de geladeiras
desativada. Nos anos 90, o Moinho Santo Antônio (antigo Grandes Moinhos Gamba), na Mooca,
é transformado em casa noturna.
No Brás, a Universidade Anhembi Morumbi estabelece campus
na antiga fábrica da Alpargatas.
Ainda no Brás, os imóveis do
Moinho Matarazzo (1900) e da
Tecelagem Mariângela (1904)
-reconhecidos como de valor
histórico- abrigam um restaurante e um centro comercial, respectivamente. Em todo o eixo, há
edifícios degradados e com uso
mais trivial. No Cotonifício Conde Rodolfo Crespi, na Mooca,
funciona um estacionamento.
"A qualidade de construção
desses prédios é importante. É o
caso das estruturas em arco e do
aparelhamento dos tijolos", explica Rafaela Bernardes, do DPH
(Departamento do Patrimônio
Histórico). Apesar da importância dessa arquitetura, não há avaliação recente das áreas fabris, informa Walter Pires, do DPH. Poucas são as construções industriais
consideradas de valor histórico.
Muro de Berlim
O antigo eixo é um espaço estratégico que poderia ser destinado a
áreas públicas, habitação, comércio e serviços -deve ser objeto de
duas operações urbanas, financiadas em parte com recursos do
setor privado. Os planos de ação
ainda não estão definidos. "São
áreas de oportunidade. É necessário aproveitar os espaços vazios",
diz o secretário Jorge Wilheim.
Registro urbano do progresso e
da segregação espacial na cidade,
o "Muro de Berlim paulistano"
-na imagem da secretária nacional de Programas Urbanos, Raquel Rolnik- é também um espaço em que São Paulo pode ser
reescrita em melhores linhas.
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