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São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 2003

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indústria

Eixo fabril é vestígio da cidade que se apaga

EDNEY CIELICI DIAS
DA REDAÇÃO

São Paulo do presente consome a cidade do passado. O seu espaço urbano já foi descrito como um palimpsesto, um pergaminho no qual se escreve e que depois será apagado e reaproveitado, na imagem usada pelo professor de história da arquitetura Benedito Lima de Toledo no livro "São Paulo: Três Cidades em Um Século".
Nesse processo de reescritura urbana, identificam-se heranças de um passado mais recente que estão em mutação -o que redefine o papel que exercem na cidade.
Um desses legados está no entorno das vias férreas que cortam os primeiros bairros industriais -Lapa, Brás, Bom Retiro, Mooca, Ipiranga, por exemplo.
O caminho fabril estabeleceu uma barreira com poucas transposições entre a área mais rica e mais bem servida de serviços públicos -a região central-sudoeste- e as zonas norte e leste.
Com a perda de indústrias, o antigo eixo em torno das ferrovias acumulou grandes construções sem uso e áreas desocupadas, mas ainda permanece como marco divisório da cidade. Um reflexo disso é o afunilamento dos deslocamentos das zonas norte e leste no centro, como aponta o urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Pólis.

Segunda fundação
"A São Paulo que se vê pela janela é a cidade do século 20", diz o secretário municipal de Planejamento Urbano, Jorge Wilheim, 74, em seu gabinete no edifício Martinelli, justamente o primeiro arranha-céu paulistano, de 1934.
A despeito da condição geográfica privilegiada -uma confluência de caminhos, como bem sabiam os jesuítas e os bandeirantes-, a cidade teve três séculos de pouca relevância econômica.
A São Paulo de hoje é produto do que se pode chamar de "espetáculo do crescimento" impulsionado pelo café e pela indústria. A população de meados do século 19, de feição portuguesa, indígena e negra, transformou-se rapidamente. Em 1893, mais da metade dos moradores eram imigrantes europeus, com predomínio de italianos. De 1900 a 2000, a população multiplicou-se 43 vezes.
Em um contexto de capitais disponíveis e de grande demanda, a indústria cresceu. As primeiras fábricas, em geral alimentícias e de tecidos, margeavam as ferrovias -notadamente a Santos-Jundiaí, que escoava o café.
Nos anos 50, com o declínio do transporte ferroviário, as fábricas passam a se instalar ao longo das rodovias -ocorre uma forte industrialização na Grande SP.
De 1955 a 1980, o ciclo industrial se completou com as indústrias automobilística, metalúrgica, química e eletrônica, entre outras. A capital se tornou o principal pólo industrial da periferia do capitalismo, como destaca o secretário municipal de Desenvolvimento, Marcio Pochmann, 41.
A partir dos anos 80, esse perfil produtivo se modifica. Saem fábricas intensivas de mão-de-obra (têxteis, alimentícias, por exemplo) e entram empresas intensivas de capital (financeiras, tecnologia da informação, logística), com pessoal qualificado e melhores salários. Nessa nova realidade, as indústrias passam a se inserir pulverizadamente na trama urbana.
Clarice Messer, diretora da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, pondera que a perda de fábricas não é algo necessariamente ruim. "Não tem sentido concentrar a produção em uma só região. Os centros de decisão estão na capital e não poluem."

Novos usos
O eixo industrial ferroviário se tornou obsoleto durante a segunda metade do século 20. O complexo Matarazzo da Água Branca -o primeiro parque industrial do país- é desativado e quase inteiramente demolido. Entre outros casos, a fábrica da Antarctica na Mooca -instalada desde 1904 no local onde até então havia funcionado a antiga Cervejaria Bavária- é fechada em 1995.
Ocorrem iniciativas de reaproveitamento de prédios industriais. Um marco disso é o Sesc Pompéia, inaugurado em 1982. O projeto da arquiteta Lina Bo Bardi criou um centro de lazer e cultura em uma indústria de geladeiras desativada. Nos anos 90, o Moinho Santo Antônio (antigo Grandes Moinhos Gamba), na Mooca, é transformado em casa noturna. No Brás, a Universidade Anhembi Morumbi estabelece campus na antiga fábrica da Alpargatas.
Ainda no Brás, os imóveis do Moinho Matarazzo (1900) e da Tecelagem Mariângela (1904) -reconhecidos como de valor histórico- abrigam um restaurante e um centro comercial, respectivamente. Em todo o eixo, há edifícios degradados e com uso mais trivial. No Cotonifício Conde Rodolfo Crespi, na Mooca, funciona um estacionamento.
"A qualidade de construção desses prédios é importante. É o caso das estruturas em arco e do aparelhamento dos tijolos", explica Rafaela Bernardes, do DPH (Departamento do Patrimônio Histórico). Apesar da importância dessa arquitetura, não há avaliação recente das áreas fabris, informa Walter Pires, do DPH. Poucas são as construções industriais consideradas de valor histórico.

Muro de Berlim
O antigo eixo é um espaço estratégico que poderia ser destinado a áreas públicas, habitação, comércio e serviços -deve ser objeto de duas operações urbanas, financiadas em parte com recursos do setor privado. Os planos de ação ainda não estão definidos. "São áreas de oportunidade. É necessário aproveitar os espaços vazios", diz o secretário Jorge Wilheim.
Registro urbano do progresso e da segregação espacial na cidade, o "Muro de Berlim paulistano" -na imagem da secretária nacional de Programas Urbanos, Raquel Rolnik- é também um espaço em que São Paulo pode ser reescrita em melhores linhas.


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