São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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pedras no caminho

Crescimento ofusca, mas não elimina miséria

Índia e China ainda terão de superar pobreza e enormes desafios antes de se tornarem superpotências, afirma economista indiano

RAUL JUSTE LORES
DA REPORTAGEM LOCAL

O economista indiano Pranab Bardhan é uma das raras vozes a não se empolgar com o frenesi do crescimento de China e Índia. "É importante não exagerar as conquistas desses dois países. Há muitos obstáculos e armadilhas que eles terão que enfrentar", diz. Professor de Economia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, desde 1977, suas áreas preferidas de estudo são desenvolvimento econômico e comércio internacional. Bardhan estudou em Kolkata (a antiga Calcutá) e é Ph.D em Cambridge. Leia abaixo trechos da entrevista à Folha.

 

FOLHA - O senhor é um dos maiores críticos à idéia de que China e Índia caminham rapidamente para se tornarem superpotências. Mas eles não estão no caminho certo do crescimento e têm tamanho para tal?
PRANAB BARDHAN
- Há muito a se admirar nas mudanças desses duas grandes economias, e o Ocidente precisa aprender a conviver com elas. Mas China e Índia ainda são países paupérrimos. De seus 2,3 bilhões de habitantes, quase 1,5 bilhão vive com menos de US$ 2 diários. É certo que a redução da pobreza na China tem sido histórica, mas ela ainda é enorme. A badalação sobre a economia indiana parece prematura e os riscos para a China são altamente subestimados.

FOLHA - Mas a economia de ambos se modernizou em pouco tempo.
BARDHAN
- Sim, mas precisamos ver a escala disso. Na China, menos de 20% da força de trabalho está empregada em manufaturas, mineração e construção somadas. Quase metade dela está na agricultura. Na Índia, são 60%. Como milhões de camponeses serão absorvidos pelas duas economias é uma questão bem preocupante.

FOLHA - É prematuro colocar a Índia ao lado da China?
BARDHAN
- O país está na direção correta em vários aspectos, mas é cedo para dizer se será um sucesso econômico. Há problemas demais. Infra-estrutura, saúde, educação são piores que em muitos países pobres. Muito piores que na China ou no Brasil. É importante não exagerar as indubitáveis conquistas desses dois países. Há muitos obstáculos e armadilhas que eles terão que enfrentar no futuro próximo, antes que eles se tornem atores significativos na cena econômica internacional de uma maneira sustentável.

FOLHA - É correta a percepção de que na China o governo lidera o crescimento e na Índia, atrapalha?
BARDHAN
- O governo indiano tem sido perturbador, bloqueia várias coisas, mas também é útil em outras. O boom do software é baseado em gente que se formou nas faculdades de administração e tecnologia de primeiro nível que são mantidas pelo governo.

FOLHA - E quanto à burocracia e corrupção nos dois países?
BARDHAN
- China e Índia têm um legado de mão-pesada e burocracia regulatória corrupta. Ainda assim, há diferenças. Abrir um negócio na China leva 48 dias, enquanto na Índia leva 71. Registrar uma propriedade requer 67 dias na Índia, enquanto na China leva 32.

FOLHA - Na Índia, as reformas econômicas não estão em ritmo muito lento? O que aconteceu?
BARDHAN
- As reformas na Índia têm sido hesitantes, marcadas por dois passos adiante e outro atrás. Isso é usualmente atribuído ao ritmo mais vagaroso de uma democracia. A construção febril de usinas e estradas na China passa por cima de lugares habitados ou importantes ecologicamente, em relativo curto período de tempo. Na Índia, processos similares atravessam longas negociações e manifestações de massa. As leis trabalhistas tornam difícil a demissão de trabalhadores em grandes empresas, mesmo quando eles são ineficientes ou há redução do mercado para algumas linhas de produção. Isso desencoraja novas contratações. O efeito adverso disso está no nosso setor têxtil, ultrapassado pelo sucesso recente da China, onde não existem tais restrições.

FOLHA - A Índia recebe menos de um décimo dos investimentos estrangeiros que a China e menos que Brasil ou México. Ainda existem muitas barreiras?
BARDHAN
- O governo indiano e o povo em geral não eram muito receptivos aos investimentos estrangeiros até bem recentemente. E investimentos estrangeiros, mesmo quando bem-vindos pelo governo indiano, estão limitados pela débil infra-estrutura do país. Estudo recente da KPMG estimou que uma fábrica pode sofrer 17 cortes de energia por mês na Índia. Na China, são cinco. O número de dias de embarque e desembarque no porto de Mumbai é várias vezes maior que no de Xangai. Um déficit fiscal de 10% do PIB faz que seja bem difícil ao governo indiano investir em infra-estrutura. Com grandes investimentos externos, déficit fiscal menor e arrecadação de impostos maior, o governo chinês pode investir em massa.

FOLHA - Por isso, o contraste entre os dois vai continuar a ser enorme?
BARDHAN
- Na China, os aeroportos que brilham de novos, os modernos complexos industriais e as vias expressas com várias pistas surpreendem os visitantes no litoral ou nas grandes cidades, mas não podem ser encontrados na Índia. Há melhorias nas estradas, nos portos ou nas telecomunicações. Mas em eletricidade, trens e no saneamento básico, ainda mantemos políticas populistas, que não permitem que se cobre o que esses serviços custam. A infra-estrutura limitada inibe investimentos.

FOLHA - A Índia tem se transformado em um centro de tecnologia e de "outsourcing" para os países ricos. Esse fenômeno pode se multiplicar?
BARDHAN
- As hordas de engenheiros de software, operadores de call centers e programadores da Índia fazem a elite indiana ficar orgulhosa e são um evento importante na economia. Mas todos os empregos surgidos nesses setores não chegam a 1 milhão. É 0,25% da força de trabalho da Índia. Mesmo que esse número venha a triplicar em dez anos, é uma fagulha nas condições de centenas de milhões de trabalhadores do país. A Índia é o maior contribuinte em números absolutos na quantidade de analfabetos do mundo.

FOLHA - Pelo que o senhor diz, a Índia está atrás da China em quase tudo. Mas é uma democracia. Isso não faz uma grande diferença?
BARDHAN
- Por isso, a China está muito atrás da Índia na habilidade de gerenciar conflitos. Eu estava em Pequim no dia do massacre na Praça da Paz Celestial. O tamanho das manifestações, e de gente desarmada, era algo que se vê diariamente na Índia, nas mais diferentes regiões. O sistema político indiano foi capaz de dosar e conter a maioria dos grandes conflitos, desafiando muitas previsões de colapso do estado indiano ou de sua democracia.

FOLHA - Como será a transição chinesa rumo à democracia?
BARDHAN
- É improvável que seja tão suave. A preocupação das autoridades em manter a ordem e a estabilidade e o monopólio do partido provoca uma reação exagerada às situações mais difíceis, às vezes com conseqüências desastrosas.


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