São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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os desafios

Mais competitiva, China ameaça Brasil

Economista afirma que presença do Estado em áreas como crédito, educação, ciência e tecnologia viabiliza as altas taxas de investimento e absorção de tecnologia da China

MAURÍCIO MESQUITA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A EXTRAORDINÁRIA expansão da China e sua crescente participação na economia mundial deixam no ar duas grandes inquietudes para o Brasil. A primeira tem relação com as lições de política. Por que a China pode crescer a dois dígitos por quase três décadas, sem descontrole inflacionário, e o Brasil não? A segunda se refere à melhor estratégia para enfrentar os desafios e aproveitar as oportunidades geradas pelo êxito chinês.
A primeira inquietude não é nova. Já nos perguntamos por que não crescíamos como o Japão, a Coréia do Sul ou Taiwan. São animais diferentes, que decolaram em épocas distintas, mas com estratégia de crescimento similar à chinesa.
Os economistas não chegaram até hoje a um consenso sobre as raízes do sucesso desses países e é pouco provável que isso ocorra no caso da China. Há, porém, elementos comuns dessa estratégia cuja importância poucos disputam, como a prioridade ao comércio exterior, os altos níveis de poupança e investimento, a relativa estabilidade macroeconômica e a prioridade dada à educação e ao desenvolvimento tecnológico.
Mas quando se começa a discutir em detalhe esses elementos, as opiniões se dividem entre os que vêem um papel mais importante para o mercado e aqueles que valorizam o pragmatismo e onipresença do Estado, que atinge sua expressão maior no caso da China.
Consigo ver méritos em ambas as posições. Não há como negar que as reformas pró-mercado iniciadas em 1978 foram fundamentais para que a China pudesse explorar todo o seu potencial de crescimento.
Por outro lado, é evidente que a presença do Estado em áreas como crédito, educação, ciência e tecnologia tiveram e têm um papel importante para viabilizar as elevadas taxas de investimento e absorção de tecnologia que o país apresenta.
Essa posição salomônica não se mantém quando eu penso em lições de política. O êxito das políticas do Estado chinês depende, em grande parte, de um arranjo institucional que foge dos valores e aspirações da sociedade brasileira.
Intervir com êxito em uma economia de mercado depende, entre outras coisas, da qualidade das informações e análise econômica que tem o Estado, da sua capacidade de convencer a sociedade, em especial os prejudicados, dos benefícios da intervenção e da capacidade desse Estado de se defender de interesses particulares.
Em governos como o chinês, tanto o segundo como o terceiro itens são resolvidos de forma autoritária e dependem da famosa figura do "ditador benevolente". Se o país tem a sorte de possuir um ditador ou partido que têm claras quais são as políticas corretas, elas são implantadas e a dissidência é resolvida com prisão ou porrete.
Nós sabemos por experiência própria que a probabilidade de esse modelo gerar políticas eficientes é baixa, e que os custos para o desenvolvimento da sociedade civil são enormes.
O que o Brasil precisa é criar mecanismos democráticos que ajudem o Estado a melhorar a eficiência de suas políticas em áreas como comércio exterior, crédito, educação, ciência e tecnologia, onde nem sempre o mercado gera a melhor solução. Para isso, não há muito o que se aprender com a China.
Para a segunda inquietude- como aproveitar as oportunidades e enfrentar o desafio chinês-, não existem fórmulas mágicas. Em grande medida, o país precisa fazer mais do que vinha fazendo, ou havia pensado em fazer, nos últimos dez anos -abrir e estabilizar a economia, consolidar instituições, racionalizar o gasto público e aumentar o volume e a eficiência do gasto em educação, tecnologia e infra-estrutura.
O que o choque chinês muda é o tempo disponível para a implementação dessa agenda. Seja para aproveitar as oportunidades em recursos naturais ou para viabilizar a sobrevivência da indústria é preciso que o país se mova muito mais rápido.
Além de "forçar a marcha" de uma agenda conhecida, é preciso repensar a política externa. Não me venham mais com o enfoque "China, nosso grande irmão do Sul", até porque a China é no hemisfério Norte. Não se trata de propor o confronto, mas de negociar duro com um país que defende seus interesses sem nenhuma consideração político-ideológica.
Essa mudança de atitude é importante tanto para os setores que exportam recursos naturais quanto para a indústria. Para os primeiros, porque existe ainda uma agenda importante de acesso a mercado.
A tarifa média da China para agricultura está em 15,8%, agravada por picos tarifários de 34% para grãos e 20% para café e açúcar. Isso sem falar das quotas tarifárias que atingem produtos como óleo de soja e açúcar e dos obstáculos envolvidos em medidas sanitárias e fitossanitárias "pouco razoáveis", nas palavras da OMC.
No caso da indústria, a política industrial agressiva da China coloca uma séria questão de defesa comercial, que o reconhecimento do país como economia de mercado só agravou.
É preciso também atuar mais agressivamente em pelo menos duas direções. Primeiro, no sentido de garantir acesso privilegiado aos mercados do Norte, sejam os EUA ou a Europa.
Diante das vantagens competitivas chinesas, a indústria brasileira não pode se dar ao luxo de não ter esse acesso, sobretudo com o alargamento da União Européia e a proliferação dos acordos bilaterais dos EUA com quase todo o resto da América Latina. O risco de desindustrialização não vem do Norte, mas sim do Leste.
Segundo, no sentido de explorar de maneira mais eficiente os recursos que o país tem. Que o Brasil tivesse sua indústria concentrada no Sudeste na época da substituição de importações, era compreensível. Como se podia produzir a qualquer custo, o que importava era a proximidade de mercado.
O cenário mudou com a abertura, uma vez que a competição das importações deu maior relevância ao custo dos fatores, em particular ao da mão-de-obra. Mas a mudança levou a um movimento de desconcentração espacial mais tímido do que se poderia esperar.
De acordo com o IBGE, o salário médio industrial no Nordeste em 2003 era aproximadamente 50% mais baixo que o do Sudeste e 40% inferior à média do país. Já os salários do Sudeste eram quase quatro vezes mais altos que os chineses.
Assumindo que os números não mudaram muito, a transferência para o Nordeste cortaria a diferença salarial em relação à China quase pela metade. Associado a um câmbio mais competitivo e à maior proximidade do Brasil dos mercados americano e europeu, isso colocaria a indústria em condições melhores de competir com a China e de gerar empregos e desenvolvimento regional.
É claro que por trás da timidez na desconcentração espacial devem estar problemas como a infra-estrutura precária, o baixo nível de qualificação da mão-de-obra e os problemas que afetam o clima de negócios.
A "opção Nordeste", para que seja viável, tem que vir acompanhada de políticas públicas que tratem dessas deficiências e criem condições para que os recursos que estão lá sejam bem aproveitados. Como na maioria dos nossos problemas, as soluções estão ao nosso alcance. É preciso agir, e já.


MAURÍCIO MESQUITA , 44, doutor em economia pela Universidade de Londres, é economista-sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento.


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