|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
6,1% dos brasileiros ainda morrem devido a infecções típicas do Terceiro Mundo, como dengue, cólera e malária
País tem doenças modernas sem ter eliminado as antigas
ELIANE CANTANHÊDE
DIRETORA DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Os indicadores sobre saúde reforçam que o Brasil pode e deve
ser classificado como "Belíndia",
mistura de Bélgica, país rico, com
Índia, pobre. A mortalidade infantil cai sistematicamente, e a
principal causa de morte são as
doenças circulatórias (coisa de
Primeiro Mundo), mas milhões
de brasileiros ainda morrem de
doenças infecciosas e parasitárias
típicas de Terceiro Mundo.
Em 1999, o Ministério da Saúde
registrou 755.625 mortes no país.
Desse total, 254.271 (33,7%) foram por doenças circulatórias, como infarto e derrames, que demonstram um aumento da expectativa de vida da população.
Na outra ponta, 46.171 (6,1%, índice muito alto), por doenças como dengue, malária, cólera e diarréia, que dependem fortemente
de educação, condições de higiene e campanhas públicas de combate a mosquitos, por exemplo.
Um outro dado da miséria e da
falta de assistência que persiste no
Brasil é que 137.393 mortes
(18,2%) foram registradas simplesmente como "mal definidas".
Significa que o segundo maior
contingente de mortes tem causa
incerta e não sabida. Ou seja: ou o
atendimento médico foi precário
ou simplesmente não existiu.
Essa convivência entre índices
de Primeiro e Terceiro Mundo já
havia sido identificada pela pesquisadora Maria do Carmo Leal,
da Fiocruz (Fundação Oswaldo
Cruz), e classificada por ela como
"transição epidemiológica imperfeita". Um fenômeno que começou a partir dos anos 60 e que se
confunde tanto com o crescimento econômico quanto com a concentração de renda do país.
Segundo a Opas (Organização
Panamericana de Saúde), os índices de mortalidade de crianças até
cinco anos vem caindo nas últimas décadas. Entre 1950 e 1955,
morriam 134 bebês para cada
1.000 nascidos vivos. Entre 1999 e
1995, a taxa caiu para 47 por 1.000.
Em 1996, porém, 10,5% das crianças tinham deficiência de altura,
2,3%, baixo peso em relação à altura, e 5,7%, em relação à idade.
A expectativa de vida do brasileiro também aumentou significativamente no século 20 [leia à
pág. Especial-2]. Um dado importante é que, apesar das desigualdades regionais se manterem ainda muito altas no Brasil, a diferença de expectativa de vida caiu bastante entre as regiões, e as pessoas
morrem quase na mesma idade
no Sul, Sudeste, Norte, Nordeste e
Centro-Oeste.
A maior esperança de vida é no
Sul, e a menor, no Nordeste. Mas
era de 50,1 num e 38,2 anos no outro em 1940 e passou a ser de 68,7
e 64,3 anos em 1990. Em 50 anos, a
diferença entre esses extremos
caiu de quase 12 anos para 4,4.
A dengue, por exemplo, não só
não poupou como foi especialmente dura em Estados do Sudeste, como Rio de Janeiro e Espírito
Santo. Boletim epidemiológico da
Funasa (Fundação Nacional de
Saúde) indicou que, desde 2001,
havia focos do mosquito Aedes
aegypti, transmissor da dengue,
em 3.587 dos 5.507 municípios de
então. Ou seja, em 65% deles. A
maior epidemia foi em 2002, pelo
menos desde o início da notificação obrigatória, em 1990. Foram
736 mil casos, com 134 mortes.
Também a Aids atingiu todas as
regiões, mas vem sendo controlada por programas de saúde pública. De 1991 a 1995, houve 14 casos
por 100 mil habitantes. De 1996 a
2001, 11. A campanha brasileira
acabou servindo de modelo, especialmente para a África -onde
a Aids dizima milhões.
Apesar dessa "desconcentração" de mortes nas regiões mais
pobres e da convergência dos índices de expectativa de vida de
Norte a Sul, é nos rincões que as
doenças de Terceiro Mundo ainda proliferam e matam. Exemplo:
a malária no Amazonas.
Em 1999, foram 167.722 casos,
com 23 mortes registradas oficialmente. Em 2002, os casos haviam
caído de forma substantiva, para
69.797, mas as mortes se mantiveram no mesmo patamar: 23. Não
há vacina, mas a doença -transmitida por um protozoário do gênero Plasmodium- pode ser
combatida com sucesso com o
popular "fumacê", que nada mais
é do que aplicação de inseticida
nas áreas suscetíveis.
Para a malária, pode haver o
pretexto de que é típica numa região úmida e de difícil acesso, mas
não há motivo nenhum, além do
descuido estatal, para a persistência de doenças há muito banidas
ou controladas nos países desenvolvidos. Dois bons exemplos são
a leptospirose, transmitida por ratos, a hanseníase e a tuberculose.
Em 2001, o Brasil já era o 10% do
mundo em número absoluto de
tuberculosos. No país todo, eram
cerca de 90 mil doentes. Em São
Paulo, ocorriam 19 mil novos casos por ano, com perto de 1.600
mortes. A situação é agravada pelo descaso e pela desinformação.
O país tem um dos maiores índices de abandono do tratamento
do mundo, e apenas cerca de 60%
dos pacientes paulistas se curam,
apesar da eficácia dos medicamentos disponíveis.
As estatísticas mostram, assim,
que o principal desafio do Brasil
neste novo século é enfrentar e
vencer a "transição epidemiológica imperfeita": a convivência entre doenças da Idade Média com
outras sofisticadíssimas.
Tem que descobrir recursos e
estar apto a prevenir, diagnosticar
e tratar do passado e do futuro,
dos pobres e dos ricos: as doenças
transmissíveis típicas da pobreza
e da falta de saneamento básico
(esgotos, privadas, água potável)
e, ao mesmo tempo, das cardiovasculares e neoplásicas, que aumentam com a idade do indivíduo e cuja incidência é proporcional ao desenvolvimento do país.
Texto Anterior: Desde Eva, 93, até Andréa, 28 Próximo Texto: População não-branca cresce Índice
|