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São Paulo, terça-feira, 30 de setembro de 2003

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6,1% dos brasileiros ainda morrem devido a infecções típicas do Terceiro Mundo, como dengue, cólera e malária

País tem doenças modernas sem ter eliminado as antigas

ELIANE CANTANHÊDE
DIRETORA DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Os indicadores sobre saúde reforçam que o Brasil pode e deve ser classificado como "Belíndia", mistura de Bélgica, país rico, com Índia, pobre. A mortalidade infantil cai sistematicamente, e a principal causa de morte são as doenças circulatórias (coisa de Primeiro Mundo), mas milhões de brasileiros ainda morrem de doenças infecciosas e parasitárias típicas de Terceiro Mundo.
Em 1999, o Ministério da Saúde registrou 755.625 mortes no país. Desse total, 254.271 (33,7%) foram por doenças circulatórias, como infarto e derrames, que demonstram um aumento da expectativa de vida da população.
Na outra ponta, 46.171 (6,1%, índice muito alto), por doenças como dengue, malária, cólera e diarréia, que dependem fortemente de educação, condições de higiene e campanhas públicas de combate a mosquitos, por exemplo.
Um outro dado da miséria e da falta de assistência que persiste no Brasil é que 137.393 mortes (18,2%) foram registradas simplesmente como "mal definidas". Significa que o segundo maior contingente de mortes tem causa incerta e não sabida. Ou seja: ou o atendimento médico foi precário ou simplesmente não existiu.
Essa convivência entre índices de Primeiro e Terceiro Mundo já havia sido identificada pela pesquisadora Maria do Carmo Leal, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), e classificada por ela como "transição epidemiológica imperfeita". Um fenômeno que começou a partir dos anos 60 e que se confunde tanto com o crescimento econômico quanto com a concentração de renda do país.
Segundo a Opas (Organização Panamericana de Saúde), os índices de mortalidade de crianças até cinco anos vem caindo nas últimas décadas. Entre 1950 e 1955, morriam 134 bebês para cada 1.000 nascidos vivos. Entre 1999 e 1995, a taxa caiu para 47 por 1.000. Em 1996, porém, 10,5% das crianças tinham deficiência de altura, 2,3%, baixo peso em relação à altura, e 5,7%, em relação à idade.
A expectativa de vida do brasileiro também aumentou significativamente no século 20 [leia à pág. Especial-2]. Um dado importante é que, apesar das desigualdades regionais se manterem ainda muito altas no Brasil, a diferença de expectativa de vida caiu bastante entre as regiões, e as pessoas morrem quase na mesma idade no Sul, Sudeste, Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
A maior esperança de vida é no Sul, e a menor, no Nordeste. Mas era de 50,1 num e 38,2 anos no outro em 1940 e passou a ser de 68,7 e 64,3 anos em 1990. Em 50 anos, a diferença entre esses extremos caiu de quase 12 anos para 4,4.
A dengue, por exemplo, não só não poupou como foi especialmente dura em Estados do Sudeste, como Rio de Janeiro e Espírito Santo. Boletim epidemiológico da Funasa (Fundação Nacional de Saúde) indicou que, desde 2001, havia focos do mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue, em 3.587 dos 5.507 municípios de então. Ou seja, em 65% deles. A maior epidemia foi em 2002, pelo menos desde o início da notificação obrigatória, em 1990. Foram 736 mil casos, com 134 mortes.
Também a Aids atingiu todas as regiões, mas vem sendo controlada por programas de saúde pública. De 1991 a 1995, houve 14 casos por 100 mil habitantes. De 1996 a 2001, 11. A campanha brasileira acabou servindo de modelo, especialmente para a África -onde a Aids dizima milhões.
Apesar dessa "desconcentração" de mortes nas regiões mais pobres e da convergência dos índices de expectativa de vida de Norte a Sul, é nos rincões que as doenças de Terceiro Mundo ainda proliferam e matam. Exemplo: a malária no Amazonas.
Em 1999, foram 167.722 casos, com 23 mortes registradas oficialmente. Em 2002, os casos haviam caído de forma substantiva, para 69.797, mas as mortes se mantiveram no mesmo patamar: 23. Não há vacina, mas a doença -transmitida por um protozoário do gênero Plasmodium- pode ser combatida com sucesso com o popular "fumacê", que nada mais é do que aplicação de inseticida nas áreas suscetíveis.
Para a malária, pode haver o pretexto de que é típica numa região úmida e de difícil acesso, mas não há motivo nenhum, além do descuido estatal, para a persistência de doenças há muito banidas ou controladas nos países desenvolvidos. Dois bons exemplos são a leptospirose, transmitida por ratos, a hanseníase e a tuberculose.
Em 2001, o Brasil já era o 10% do mundo em número absoluto de tuberculosos. No país todo, eram cerca de 90 mil doentes. Em São Paulo, ocorriam 19 mil novos casos por ano, com perto de 1.600 mortes. A situação é agravada pelo descaso e pela desinformação. O país tem um dos maiores índices de abandono do tratamento do mundo, e apenas cerca de 60% dos pacientes paulistas se curam, apesar da eficácia dos medicamentos disponíveis.
As estatísticas mostram, assim, que o principal desafio do Brasil neste novo século é enfrentar e vencer a "transição epidemiológica imperfeita": a convivência entre doenças da Idade Média com outras sofisticadíssimas.
Tem que descobrir recursos e estar apto a prevenir, diagnosticar e tratar do passado e do futuro, dos pobres e dos ricos: as doenças transmissíveis típicas da pobreza e da falta de saneamento básico (esgotos, privadas, água potável) e, ao mesmo tempo, das cardiovasculares e neoplásicas, que aumentam com a idade do indivíduo e cuja incidência é proporcional ao desenvolvimento do país.


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