São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2008

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ORIGENS

Vida na Vila

Viver aqui é um curso prático de impermanência. As coisas mais sólidas, como uma casa, podem sumir de uma semana para a outra

ÍNDIGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na casa ao lado vive um bicho que nunca consegui identificar. No começo, achei que fosse um papagaio selvagem. Ele não fala português. Depois achei que estava mais para uma arara. Dependendo do dia, parece um poodle histérico. Seja lá o que for, é ele meu despertador. Seus horários são bem rígidos. Começa o berreiro às 7:30 e pára às nove. Depois, só na manhã seguinte. Vai ver, é uma criança.
De dia, tudo é bem calminho por aqui. Aproveito para escrever. Dizem que parece cidade de interior. Bem, eu sou do interior. Não é isso.Parece cidade fantasma, o que para efeitos de escrita, é até melhor.
A rua de cima se chama Purpurina. A de baixo, Wisard. Existem duas Vilas Madalenas. A do dia, e a da noite. À noite, é sempre Natal. Acho que foi em 2005 que enrolaram umas luzinhas amarelas nos troncos das árvores da Aspicuelta, e nunca mais tiraram. Fora essas luzinhas, tudo o mais é movediço.
Viver aqui é um curso prático de impermanência. As coisas mais sólidas, como uma casa, podem sumir de uma semana para a outra. No lugar surge um estacionamento. Você olha, olha, e se pergunta se era ali que havia uma casa com um jardinzinho lindo. O novo manobrista não vai saber informar. Os bares, quando ficam, são mutantes. O que era um restaurante mineiro, vira bistrô, que vira boteco, que depois vira sushi bar, que vira restaurante contemporâneo que você nem entende direito que tipo de comida serve. Um café pode virar um brechó, que por sua vez vira uma revistaria, que vira uma loja, que vira um ateliê, que depois vira um portão fechado e pronto.
Outro dia fui convidada para uma festa num desses portões, na rua de trás. Quando entrei, era um sítio! Havia árvores, canteiros, uma pequena horta, bancos de madeira, tudo muito hippie chique.
No quilo onde costumo almoçar, sempre tem um ingrediente improvável na comida. Pêra no estrogonofe. Pequenos budas ficam boiando na água quente entre as travessas.
Cheguei atrasada na Vila Madalena. Era dois mil e pouco. Já tinha Blockbuster e falava-se no surgimento de um Mcdonalds. Seria o fim. Ele ainda não chegou, mas o perigo ronda o bairro.
Outro dia, num domingo de manhã, encontrei um artista de verdade, com seu cavalete. Estava na esquina da Wisard com a Harmonia, uma esquina estranha, à qual nos referimos como a Vila Olímpia da Vila. Mas lá estava o artista, com sua velha boina, registrando a fachada de uma lanchonete patricinha.
Mas acho que só fui sentir na pele a fragilidade do meu bairro no dia que a polícia passou uma multa para o Marquinho, na Mercearia São Pedro. Então fiquei realmente preocupada.
Nas semanas seguintes, ninguém mais gritou ali dentro. Nem o Xico Sá. Foi uma das coisas mais estranhas que já vivi. Todos falando baixo, por amor ao bar, mostrando uma educação que a gente nem sabia que tinha. Foi bonito, foi heróico e foi difícil. A Mercearia vive, e o resto da Vila vai sobrevivendo como pode.


ÍNDIGO
é escritora e mantém o blog www.diariodaodalisca.zip.net



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