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Refúgio
Apesar da "limpeza" feita pela polícia para a Copa, centro ainda abriga sem-teto em igreja , liberada para a ocupação noturna de 2.000 ° refugiados vindos do Zimbábue
LAURA CAPRIGLIONE
PAULA CESARINO COSTA
ENVIADAS ESPECIAIS A JOHANNESBURGO
O centro de Johannesburgo figura nos guias como um
dos locais mais perigosos para turistas: "À noite, não vá",
dizem todos. Sem o movimento do comércio, sem polícia, o centro fica entregue
às quadrilhas de traficantes,
ao submundo que se esconde
nos mais de 45 edifícios
abandonados, onde vivem
cerca de 30 mil pessoas.
Neste período de Copa, o
centro de Johannesburgo foi
ocupado por centenas de policiais -quatro por esquina
em carros novos. E se, de repente, aparece um turista desavisado? "Precisamos proteger vocês", diz o sargento
da polícia Nzama Ngobeni à
Folha, às 20h, com ruas quase vazias e escuras.
Os cerca de 2.000 sem-teto
que normalmente dormem
nas ruas e praças sumiram.
Foram removidos para os subúrbios pouco antes da Copa
-"limpeza" igual à feita em
outras cidades-sede.
Mas um grupo coeso resistiu. São cerca de 2.000 pessoas, 80% das quais refugiados do Zimbábue, que dormem na Igreja Metodista
Central de Johannesburgo.
Durante o dia, dedicam-se ao
pequeno comércio ambulante e à busca por trabalho.
À noite, a partir das 19h,
vêm dormir. Homens (70%),
mulheres (30%) e crianças
(90 no total) amontoam-se
no chão (com frio de 0C) sob
cobertor fino, papelões e
com o calor do corpo ao lado.
São repulsivos o cheiro
forte da falta de banho e das
roupas imundas, a escuridão
dominante (a energia é racionada pela igreja), e o fato
de não haver onde pisar (cada passo pode ser um pisão
em alguém). Mas, nas escadarias internas, é pior.
Enrolados em cobertores,
dezenas de homens deitam-
-se com as cabeças nos degraus de cima e os pés sete
abaixo. Basta que se mexam
para ir escada abaixo. Passam a noite duros como múmias, tentando um cochilo.
O bispo Paul Verryn, 58,
responsável pela igreja,
abriu as portas do templo em
2002, ao perceber que a tragédia humanitária no país
vizinho virara sua vizinha.
"São pessoas traumatizadas por todo tipo de violência -roubos, estupros, assassinatos- cometido pelos
guma-guma [bandidos que
fazem transbordo da fronteira, em troca de dinheiro].
São doentes, com tuberculose, HIV, cólera. São miseráveis, apesar de haver entre
eles médicos e engenheiros."
Há hoje na África do Sul
cerca de 3 milhões de refugiados do Zimbábue, gente
que fugiu da miséria, do caos
da economia (98% de inflação por dia) e de perseguições e massacres promovidos pelo ditador Robert Mugabe, no poder há 30 anos.
PIOR QUE O APARTHEID
Sim, há algo pior do que
ser um negro pobre na África
do Sul, 17 anos após o fim do
apartheid. É ser um negro miserável do Zimbábue na África do Sul. Para ele, não há a
tal "união africana" da Copa.
Em maio de 2008, ataques
xenofóbicos explodiram em
Alexandra, distrito pobre de
Johannesburgo. Zimbabuanos tomavam empregos sem
qualificação que garantiam o
ganha-pão dos africanos.
O ódio a estrangeiros negros cresceu pelo país. Segundo a ONG Médicos Sem
Fronteiras, 62 pessoas morreram nos conflitos e 670 ficaram feridas. Não se sabe de
casos novos na Copa.
Em janeiro de 2008, a polícia fez uma blitz na Igreja Metodista Central. 350 refugiados foram detidos e liberados
após um juiz considerar a prisão deles "tão irregular
quanto seria a instalação de
um campo de concentração".
Segundo Paul Verryn, o
governo da África do Sul
"não tem recursos para gastar com os refugiados", e, por
isso, não ajuda. Não há albergues públicos.
Alimentos, remédios, cursos, roupas, ajuda de custo
diária, além de assistência
psicológica, os refugiados recebem graças a convênios
entre a igreja e ONGs, como a
Médicos Sem Fronteiras.
Verryn fez seus próprios
mandamentos para garantir
um mínimo de sanidade na
igreja ocupada: "Não pode
fumar, especialmente maconha. Não pode beber. Se você
bebeu, não venha para o prédio. Tivemos há dois anos
dois assassinatos nesse prédio, os dois por causa de bebida. Tem de chegar às 19h.
Às 22h, as luzes se apagam.
Tem de tentar manter a limpeza (sua e do lugar). Sexo,
só com a própria mulher (e
em dormitórios para casais).
Armas de qualquer tipo não
entram. Roubar não pode".
Segundo as contas do religioso, 40 mil zimbabuanos já
passaram por lá. Muitos arrumaram empregos, melhoraram de situação. Voltaram
para seu país. Os números
variam, mas algo entre 300 e
1.000 homens, mulheres e
crianças dessa África profunda ainda chegam por dia à rica Johannesburgo da Copa
do Mundo. Invariavelmente,
o primeiro pouso é na igreja.
Segundo Ambrose Mapiravana, segurança do lugar, todos ali torcem pelo Brasil.
Não sabe ele que a seleção silenciou sobre a ditadura de
Mugabe, em amistoso lá.
Dunga até fez questão de elogiar o sistema educacional
do Zimbábue, lembra?
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