São Paulo, quinta-feira, 01 de julho de 2010

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Refúgio

Apesar da "limpeza" feita pela polícia para a Copa, centro ainda abriga sem-teto em igreja , liberada para a ocupação noturna de 2.000 ° refugiados vindos do Zimbábue

LAURA CAPRIGLIONE
PAULA CESARINO COSTA
ENVIADAS ESPECIAIS A JOHANNESBURGO

O centro de Johannesburgo figura nos guias como um dos locais mais perigosos para turistas: "À noite, não vá", dizem todos. Sem o movimento do comércio, sem polícia, o centro fica entregue às quadrilhas de traficantes, ao submundo que se esconde nos mais de 45 edifícios abandonados, onde vivem cerca de 30 mil pessoas.
Neste período de Copa, o centro de Johannesburgo foi ocupado por centenas de policiais -quatro por esquina em carros novos. E se, de repente, aparece um turista desavisado? "Precisamos proteger vocês", diz o sargento da polícia Nzama Ngobeni à Folha, às 20h, com ruas quase vazias e escuras.
Os cerca de 2.000 sem-teto que normalmente dormem nas ruas e praças sumiram. Foram removidos para os subúrbios pouco antes da Copa -"limpeza" igual à feita em outras cidades-sede.
Mas um grupo coeso resistiu. São cerca de 2.000 pessoas, 80% das quais refugiados do Zimbábue, que dormem na Igreja Metodista Central de Johannesburgo. Durante o dia, dedicam-se ao pequeno comércio ambulante e à busca por trabalho.
À noite, a partir das 19h, vêm dormir. Homens (70%), mulheres (30%) e crianças (90 no total) amontoam-se no chão (com frio de 0C) sob cobertor fino, papelões e com o calor do corpo ao lado.
São repulsivos o cheiro forte da falta de banho e das roupas imundas, a escuridão dominante (a energia é racionada pela igreja), e o fato de não haver onde pisar (cada passo pode ser um pisão em alguém). Mas, nas escadarias internas, é pior.
Enrolados em cobertores, dezenas de homens deitam- -se com as cabeças nos degraus de cima e os pés sete abaixo. Basta que se mexam para ir escada abaixo. Passam a noite duros como múmias, tentando um cochilo.
O bispo Paul Verryn, 58, responsável pela igreja, abriu as portas do templo em 2002, ao perceber que a tragédia humanitária no país vizinho virara sua vizinha.
"São pessoas traumatizadas por todo tipo de violência -roubos, estupros, assassinatos- cometido pelos guma-guma [bandidos que fazem transbordo da fronteira, em troca de dinheiro]. São doentes, com tuberculose, HIV, cólera. São miseráveis, apesar de haver entre eles médicos e engenheiros."
Há hoje na África do Sul cerca de 3 milhões de refugiados do Zimbábue, gente que fugiu da miséria, do caos da economia (98% de inflação por dia) e de perseguições e massacres promovidos pelo ditador Robert Mugabe, no poder há 30 anos.

PIOR QUE O APARTHEID
Sim, há algo pior do que ser um negro pobre na África do Sul, 17 anos após o fim do apartheid. É ser um negro miserável do Zimbábue na África do Sul. Para ele, não há a tal "união africana" da Copa.
Em maio de 2008, ataques xenofóbicos explodiram em Alexandra, distrito pobre de Johannesburgo. Zimbabuanos tomavam empregos sem qualificação que garantiam o ganha-pão dos africanos.
O ódio a estrangeiros negros cresceu pelo país. Segundo a ONG Médicos Sem Fronteiras, 62 pessoas morreram nos conflitos e 670 ficaram feridas. Não se sabe de casos novos na Copa.
Em janeiro de 2008, a polícia fez uma blitz na Igreja Metodista Central. 350 refugiados foram detidos e liberados após um juiz considerar a prisão deles "tão irregular quanto seria a instalação de um campo de concentração".
Segundo Paul Verryn, o governo da África do Sul "não tem recursos para gastar com os refugiados", e, por isso, não ajuda. Não há albergues públicos.
Alimentos, remédios, cursos, roupas, ajuda de custo diária, além de assistência psicológica, os refugiados recebem graças a convênios entre a igreja e ONGs, como a Médicos Sem Fronteiras.
Verryn fez seus próprios mandamentos para garantir um mínimo de sanidade na igreja ocupada: "Não pode fumar, especialmente maconha. Não pode beber. Se você bebeu, não venha para o prédio. Tivemos há dois anos dois assassinatos nesse prédio, os dois por causa de bebida. Tem de chegar às 19h. Às 22h, as luzes se apagam. Tem de tentar manter a limpeza (sua e do lugar). Sexo, só com a própria mulher (e em dormitórios para casais). Armas de qualquer tipo não entram. Roubar não pode".
Segundo as contas do religioso, 40 mil zimbabuanos já passaram por lá. Muitos arrumaram empregos, melhoraram de situação. Voltaram para seu país. Os números variam, mas algo entre 300 e 1.000 homens, mulheres e crianças dessa África profunda ainda chegam por dia à rica Johannesburgo da Copa do Mundo. Invariavelmente, o primeiro pouso é na igreja.
Segundo Ambrose Mapiravana, segurança do lugar, todos ali torcem pelo Brasil. Não sabe ele que a seleção silenciou sobre a ditadura de Mugabe, em amistoso lá. Dunga até fez questão de elogiar o sistema educacional do Zimbábue, lembra?


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