São Paulo, domingo, 02 de outubro de 2005

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FUTEBOL

Lateral-esquerdo frustrado e freqüentador de bingos, Carvalho trocou chuteiras pelo apito na várzea de Jacareí

Calado e ruim de bola, Magrão virou juiz

FÁBIO AMATO
DA AGÊNCIA FOLHA, EM JACAREÍ

FÁBIO SEIXAS
ENVIADO ESPECIAL A JACAREÍ

A caixa de correio com o emblema da CBF no portão trancado da casa verde-claro da rua São Bartolomeu, em Jacareí, tornou-se uma espécie de termômetro nos últimos dias. Porque ali, há muitos anos, mora dona Emy, 85. Porque dona Emy é mãe de Edilson Pereira de Carvalho, 43. Porque pela quantidade de cartas era possível saber se alguém havia estado lá.
Não era muito, mas já era alguma informação da família do personagem da semana. Coisa rara.
A maior parte dos amigos e parentes mais próximos de Carvalho decidiu calar sobre sua confissão de que cobrava para arranjar resultados de partidas de futebol.
Entre o que foi falado pelos que falaram, a história de um lateral-esquerdo perna-de-pau, homem de poucas palavras, de origem humilde, freqüentador de bingos e que só saiu da casa da mãe às margens dos 40 anos. E alguma indignação, patente na comparação traçada por um velho conhecido.
"Primeiro foi o juiz assassino. Agora o juiz ladrão. A cidade não merece essas histórias", diz Luís de Paula, proprietário do Mercadinho São José, na vila de mesmo nome e na esquina da rua São Bartolomeu, a 50 m da casa de dona Emy, onde Carvalho cresceu.
O comerciante se refere a um caso de repercussão nacional em 97: o juiz da 1ª Vara Criminal de Jacareí (a 75 km de São Paulo), Marcos Antônio Tavares, foi acusado de matar a mulher e acabou condenado a 13 anos de prisão.
Morador da Vila São José, bairro de classe média baixa, Paula conhece Carvalho desde menino: "Ninguém aqui gosta muito dele. Se você não sai da frente, ele passa em cima e não pede desculpas."
"O Magrão é corintiano fanático e tentou ser lateral-esquerdo, mas era ruim. E perna-de-pau ou vira goleiro ou vira juiz", conta Orestes de Oliveira, ex-presidente do Aliança, time de várzea do bairro, chamando o árbitro pelo apelido. "Ele sempre foi fechado, não conversava com as pessoas."
Depois de apitar jogos amadores, Carvalho entrou para a Federação Paulista de Futebol em 94, usando um falso diploma de segundo grau para garantir sua filiação. Em 99, tornou-se juiz da Fifa.
Hoje, Carvalho mora em um condomínio fechado da cidade, distante do bairro, com a mulher, Márcia, e a filha. Foi para lá que voltou na quinta, após quatro noites dormindo na carceragem da Polícia Federal em São Paulo.
O funcionário público Benedito Souza Faria apitou com Carvalho na várzea de Jacareí, diz que o ex-colega sempre foi bom árbitro e que incentivava as "vaquinhas" para churrascos de sexta-feira na liga de futebol amador da cidade.
Faria acredita que o envolvimento de Carvalho com o arranjo de resultados está associado à predileção dele por jogos em bingos: "O Magrão ia muito pros bingos, e sabíamos que a condição financeira dele não era boa".
Segundo Faria, Carvalho "sempre foi bravo". E conta que, certa vez, sentiu na pele o resultado do temperamento do amigo. Em meados dos 80, Carvalho estava jogando por um time da cidade, e ele era um dos bandeirinhas.
"Em um lance, o Magrão ficou irritado, porque queria que eu tivesse marcado impedimento de um atacante do time adversário. Ele me deu o maior chacoalhão."
Ele ainda se recorda de um outro episódio, agora quando Carvalho apitava um jogo em Jacareí. "Um jogador ficou bravo com a arbitragem e, no final do jogo, acertou um chute no Magrão. Ele saiu correndo atrás do moleque, mas não conseguiu alcançá-lo."
Ex-juízes profissionais também rotulam Carvalho como uma pessoa reservada. "Nas pré-temporadas, ele nunca falava com ninguém", diz Léo Feldman. "Fechado e calado", descreve José de Assis Aragão, presidente da Anaf, o sindicato nacional dos árbitros.
Benedito Ignácio da Silva, ex-presidente da Liga de Futebol Amador de Jacareí, diz estar triste, mas negou se sentir traído. Foi ele que "inventou" Carvalho como juiz: chegou a comprar uniforme para o amigo, a pagar parte de um curso na FPF e ficou orgulhoso quando, em 90, teve a chance de condecorá-lo como o melhor árbitro da várzea da cidade.
"Confesso que é difícil imaginar esse tipo de coisa. Acho que foi um momento de fraqueza."
Até sexta-feira, embora as cartas tivessem sumido da caixa de correio com o distintivo da CBF, dona Emy não havia falado com a imprensa. "Vem repórter toda hora aqui, mas o caso dela é diferente. Não é antipatia, é vergonha", sugere o vizinho Paula.

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