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XICO SÁ
Um homem sem futebol
Privados dos embates, somos ameaça a contratos sociais, capazes de atos de um Jack, de um Chico Picadinho
AMIGO TORCEDOR , amigo secador, estava aqui com um grupo de chegados, numa simpática taberna do Recife, discutindo os
rumos da humanidade, quando um
dos nossos cavaleiros da mesa redonda solta o berro: "Golaço!!!".
Você não está entendendo, amigo,
não foi um berro qualquer, um grito
familiar, nem tampouco um humaníssimo manifesto de rotina do bicho homem. Foi daqueles brados retumbantes, guturais, que irrompem
do estômago dos monstros do trash
metal e das cavernas do Medievo. De
repente aquela tarde à João Gilberto, com barquinhos à bossa nova ao
longe, é tomada pelo Iron Maiden e
todos os zumbis do outro mundo.
É isso o que o ingrato recesso do
futebol causa em nós, marmanjos
doentes, eternos Peter Pans ludopédicos. É isso, um simples gol de pelada na praia do Pina, nos contornos
de Brasília Teimosa, vira comoção, o
ritual mais primitivo do coração das
trevas. O pior é que só o amigo Roberto Azoubel, o dono do grito, viu o
golaço. Só o "doctor estranho", sua
nova alcunha, solitariamente testemunhou o épico. Para nosso desgosto, óbvio. Só nos restou, naquele momento solene, roer as unhas da inveja em busca de um replay impossível, um videoteipe imaginário.
O "golaço" incendiou a fantástica
usina de fabulações que é a mente
humana privada dos grandes embates. Tivemos de nos contentar com a
narrativa da testemunha, que deu
conta de uma tabela na canela do rival e um toque sutil por debaixo do
último beque que guardava a trave
portátil. A bola passou rente ao latifúndio dorsal do zagueiro e foi conduzida caprichosamente, com ajuda
de vento e maré, ao fundo do filó. Daí
o grito, salivado de testosterona e jejum futebolístico: "Golaço!!!".
Jô, a costela amada da testemunha, teve um susto só comparado à
primeira vez que viu "Psicose"; Lirioboy passou a chamar o artilheiro
do Pina de Roberto Coração de
Leão, grande ídolo do seu Sport Recife; DJ Dolores, entretido com uma
"boyzinha" à milanesa-cafuçu, típica modelo das fotos de Bárbara
Wagner, também não viu a pintura,
mas assinou embaixo. Esse intervalo quase sem futebol, amigo, deixa
mesmo os homens sem noção, lesados no paraíso, Adões entregues às
vontades pecaminosas e bestiais.
Por ventura e sorte, este cronista
acabara de chegar de Juazeiro, onde
teve a felicidade de ver a Copa Integração, o que garantiu o sagrado fornecimento de ópio aos torcedores
até a véspera do último dia do ano. O
torneio reuniu times dos sertões de
Ceará, Pernambuco, Piauí e Paraíba.
O Icasa, o verdão da Meca do Cariri, sagrou-se campeão no derby com
o rubro-negro Guarani, o Leão do
Mercado. No domingo, repetem a
peleja, valendo pelo Cearense-2008.
E aos poucos teremos os Estaduais de volta, alvíssaras, porque os
embates da aldeia são os mais universais. Porque um homem sem futebol retorna à condição de bárbaro,
é ameaça aos contratos sociais, é capaz de atos de um Jack, de um Chico
Picadinho, de um Bandido da Luz
Vermelha, de um Monstro da Madalena, de um Maníaco do Parque.
Que a terra nos seja leve em 2008
e que gire em torno do sol como na
primeira visão de Copérnico, tal e
qual a bola manhosa que cisca e se
enrosca, carinhosamente, no fundo
de uma rede de várzea.
xico.folha@uol.com.br
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