São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

Texto Anterior | Índice

FUTEBOL

"Não vai acontecer nada"

SONINHA
COLUNISTA DA FOLHA

É o que a gente pensa o tempo todo. Quando sai para dar "só uma volta" de moto ou de bicicleta sem capacete. Quando atende o celular e segue dirigindo. Quando bebe "um pouco" e dá um mergulho ou sai dirigindo. Quando coloca o filho no banco da frente do carro. Ou no banco de trás, mas sem o cinto. Quando fuma. Quando deixa de usar preservativo. Quando solta balão. Quando ultrapassa na faixa dupla. Quando toma remédio por conta própria. Quando come demais ou se exercita de menos.
Serginho, ao que tudo indica, sabia que devia parar de jogar futebol. Mas teve certeza de que não ia acontecer nada, como a gente sempre tem. Confiou em si mesmo; no fato de não fumar, não beber e não cair na balada. Não disse para a mulher que ia jogar até os 40 anos? Confiou em sua fé e em sua boa fortuna -após anos como "vice" (dois Brasileiros, uma Libertadores), foi campeão paulista. Tudo estava dando certo. Não haveria problema algum.
A mulher, os amigos, todos concordaram com ele. Havia um risco "mínimo" de acontecer alguma coisa -mas a vida não está sempre em risco? Pode-se bater a cabeça em lance; pode-se bater o carro a caminho do treino...
O médico do clube sabia exatamente do risco que ele corria? Provavelmente. Teria sido convencido pelo próprio Serginho a guardar sigilo sobre o diagnóstico? A minimizar, junto aos patrões, a dimensão do perigo? Vai saber. O médico tinha a obrigação de alertar o clube, mesmo que o jogador não quisesse fazê-lo? Creio que sim. Mesmo que o jogador alegasse que sua vida só dizia respeito a ele mesmo e que não colocava ninguém mais em risco (como faria um piloto de avião, por exemplo)? Creio... que sim.
Se tivesse sido proibido de jogar, Serginho talvez perdesse a vida em depressão. Jogar era sua fonte de orgulho, realização e prazer. Talvez sofresse uma parada cardíaca subindo escada, dirigindo, jogando uma pelada na praia. Se fosse autorizado a jogar com todos os riscos assumidos, poderia, quem sabe, ter se cercado de uma estrutura hiperaparelhada para socorrê-lo em emergências.
Mas mesmo com desfibrilador portátil à beira do campo e médico, massagista, goleiro ou juiz supertreinado em ressuscitação, o fim poderia ter sido o mesmo. Serginho podia ter uma síncope debaixo do chuveiro do vestiário. Onde estaria o aparelho cobiçado? Onde estariam os médicos e o motorista da ambulância?
Especular sobre o que poderia ter sido feito (futuro do pretérito!) é tortura, especialmente para quem o amava e sofre mais com a sua falta. Examinar cuidadosamente o que foi feito e tomar medidas para melhorar o atendimento em campo, a prevenção de problemas e o nível geral de informação e responsabilidade é ótimo. Punir de maneira justa aqueles que tiverem errado é necessário. Mas não vamos esquecer que nós também erramos em nossas profissões, em nossas decisões pessoais e em nossas procrastinações. Ah, e não vamos esquecer que às vezes morremos, e não tem volta.

Aplausos
"Deus deu a ele a chance de se despedir sendo aplaudido no Morumbi." O sogro do Serginho fez o resumo mais emocionado -e emocionante- da história.

Fim de uma era?
Em passado recente, corintianos vociferaram contra Antonio Roque Citadini por causa de decisões desastradas (certas contratações, por exemplo) que acabaram deixando o time em situação ridícula. Mas, salvo engano, muito do que a torcida atribuía a ele tinha sido decidido por outras pessoas, como Andrés Sanchez e Nesi Curi. Que ganham força agora na parceria com a MSI, enquanto Citadini perde terreno. Registre-se: a "era Citadini" não foi ruim como crêem alguns.

E-mail
soninha.folha@uol.com.br


Texto Anterior: Ação - Carlos Sarli: Ondas pequenas e grandes
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.