São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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FUTEBOL

Das "galinhas de Luxemburgo" aos personagens cômicos, sede revela histórias que ajudam a entender espírito do clube

Parque guarda lenda e folclore corintiano

DA REPORTAGEM LOCAL
DO PAINEL FC

"É a máfia russa, mãe." A frase é a resposta de um garoto, filho de uma associada do Corinthians, ao ser avisado que estava diante de Alberto Dualib e sua comitiva, no saguão da sede social do clube.
Na verdade, o grupo de engravatados que visitava as instalações do futuro memorial corintiano era composto por vices, conselheiros e seguranças.
A cena é comum no Parque São Jorge, uma pequena cidade que em seus 140 mil m2 esconde atrações, quase sempre cercadas por lendas, como "as galinhas de Luxemburgo" e a biquinha com água que transforma "pagãos" em corintianos fanáticos.
Um tour pelo clube, na zona leste da capital paulista, revela o que é o Corinthians. As andanças podem proporcionar encontros com personagens folclóricos, como Biro, observador paralítico das categorias de base ou um conselheiro que limpa a dentadura na mesa do restaurante.
Muitos deles fazem parte de confrarias como a Chorumela, de antigos conselheiros, que só uma vez por ano aceita mulheres em seus encontros mensais.
O saguão onde o jovem trombou com Dualib e seu estafe é um bom ponto de partida para uma visita pelas alamedas do Parque São Jorge, que pode ser feita por associados e por quem quiser freqüentar o clube por um dia.

SENADINHO
Na saída do saguão, o visitante vê um conjunto de nove bancos, onde, à sombra de seis árvores, alguns dos mais antigos conselheiros se reúnem aos sábados para discutir a política interna.
Na opinião dos mais jovens, tais encontros servem só para que a velha-guarda fale mal de todos.
O senadinho tem como vigias permanentes estátuas de ídolos do clube, como Luizinho e Cláudio Christóvam de Pinho, e réplicas de troféus, entre eles a do Mundial de Clubes da Fifa, um tanto enferrujada. Um capacete do corintiano Ayrton Senna, morto em 1994, também faz parte do acervo, que merece ser visto.

CASINHA
A 50 passos do senadinho fica o QG do vice de futebol amador, Nesi Curi, um dos mais fortes conselheiros atualmente, apadrinhado pelo ex-presidente Wadih Helu, que por décadas ditou os caminhos da política corintiana.
Em sua sala, apelidada de casinha, Curi recebe personagens folclóricos, como André Negão, também conhecido por André da Sorte. Influente nas categorias de base, ganhou fama após ser baleado. O número de tiros varia de acordo com o narrador da história: de três a 11, assim como os motivos para o ataque.
Perto do ponto de encontro da cúpula do futebol amador, uma figurinha fácil é José de Oliveira Pena Neto, o Biro, 43, de cerca de 1,50 m de altura. Amparado por muletas, está no clube diariamente há cerca de 20 anos.
"Eu revelei o Cris [zagueiro que chegou à seleção brasileira]", diz orgulhoso, exibindo sua carteirinha de olheiro, que lhe garante uns "trocados por mês".
Ele conta que chegou ao clube pelas mãos do ex-presidente Vicente Matheus, mais folclórico dos dirigentes corintianos, e ganhou o apelido por causa de uma das contratações mais marcantes do padrinho cartola.
"Quando o Biro-Biro [ídolo do time na década de 80] chegou, pintei o cabelo de amarelo."

BAR DA TORRE
A poucos metros de onde Biro lembrava seu xará famoso há um dos pontos históricos do Parque São Jorge: o Bar da Torre.
Instalado sob o ponto mais alto de observação da cidade corintiana, ele viveu sua época mais glamourosa justamente na era da Democracia Corintiana, de Biro-Biro, Sócrates e Casagrande.
Eram tempos em que jogadores, principalmente Sócrates, dirigentes e fãs tomavam cerveja e jogavam conversa fora juntos após os treinos, confraternização impossível de acontecer atualmente.
Hoje, o bar está fechado. Há na mesa do presidente um projeto para reformá-lo e transformá-lo numa réplica gigante da taça do Mundial de Clubes da Fifa.

FAZENDINHA
Logo depois do Bar da Torre está o estádio Alfredo Schurig, que ganhou o apelido de Fazendinha por causa da antiga cobertura. Segundo os torcedores, ela o deixava parecido com uma fazenda.
O local é palco de manifestações de carinho e ódio dos torcedores. O estacionamento dos jogadores, atrás das cadeiras, já viu agressão a atletas por parte de membros de torcidas organizadas.

GALINHAS DO LUXA
A caminhada junto ao alambrado, leva à saída do estádio e a um dos locais que as crianças mais gostam no clube. Um minizoológico que começou com as galinhas de Vanderlei Luxemburgo, o técnico do milionário Real Madrid. Em 2001, ele levou 11 galinhas para o clube. Segundo dirigentes, por sugestão de um pai de santo. Everaldo dos Santos, 50, que toma conta dos animais, diz que o time de aves original de Luxemburgo não existe mais. Segundo ele, as galinhas foram trocadas por outras 11, mas duas morreram e uma desapareceu.
"O Luxemburgo [que tem uma irmã mãe-de-santo] trouxe as galinhas com a irmã dele. Mas elas já foram parar na panela ou alguém levou", contou Santos.
Como quase tudo no clube, os animais alimentam a disputa a política corintiana. Cartolas favoráveis ao retorno de Luxemburgo dizem que Santos foi orientado por desafetos do técnico a espalhar que as galinhas morreram.
Eles acreditam que o sumiço das aves podem fazer o técnico desistir de um possível retorno ao Parque São Jorge. Motivo: sem as galinhas a sorte o abandonaria.
Além das galinhas-d'angola, há dois galos, duas galinhas, um casal de pavões e quatro coelhos.
"Alguns desses animais foram deixados aqui pelos próprios sócios", explica Santos.
Outra atração é o galo Tite. O tratador não sabe o motivo que levou o galo a levar o apelido do ex-técnico corintiano, que peitou o presidente da MSI, Kia Joorabchian, e acabou demitido.
O carrasco do galo Tite é um pavão, à espera de um nome. "Ele quer brigar com o Tite, que sempre sai correndo", contou Santos. "Com as galinhas, nenhum bicho mexe, elas só andam em bando."

BIQUINHA
Da área onde são criados os animais, o visitante pode ver uma escadaria. Ela leva até uma bica. Diz a lenda corintiana que até um palmeirense passa a torcer pelo Corinthians se provar a água da biquinha. Uma imagem de São Jorge está há anos no local.

CAPELA
Mas as maiores manifestações de fé no Parque São Jorge são vistas num ponto distante dali. É preciso voltar pelo estádio, passar pelo QG de Nesi Curi e virar à esquerda, na esquina em que fica o senadinho, para se chegar à capela, construída em 1965.
As missas são aos domingos, mas diariamente os visitantes podem conversar sobre a história do clube com Serafim Ruiz, 79. O aposentado é argentino, conselheiro vitalício, afilhado de Helu.
Como quase todos no clube, ele fala de futebol e da política corintiana. "Gosto muito do Tevez e votei a favor da parceria [como Helu], mas contra os meus princípios", disse sem se explicar.

DAMAS
À esquerda da capela fica o departamento feminino, formado por mulheres de conselheiros e associadas, que oferecem cursos gratuitos de pintura, bordado e culinária, além de realizar campanhas beneficentes.

RESTAURANTE
De volta em direção à capela, inicia-se uma caminhada por uma das áreas mais movimentadas do clube. Lá estão a agência bancária, freqüentada por jogadores, a lan house, uma pizzaria e o restaurante, que recebe cartolas, jogadores e técnicos.
Um novo e maior restaurante será inaugurado em breve, mas os "causos" que nasceram no atual continuarão no folclore corintiano. Um dos mais contados tem como protagonista um conselheiro vitalício, que, segundo consta, costuma tirar a dentadura após as refeições e limpá-la com um guardanapo, sem sair da mesa.

PRÉDIO DA SEDE
O caminho de volta ao ponto de início do tour passa pelo conjunto aquático (piscinas olímpica, para saltos ornamentais, com onda, duas infantis e uma que simula correnteza), o Terrão ou Canindé, local em que são feitas as peneiras, e as canchas de bocha. O prédio de cinco andares é centro nervoso do poder corintiano, principalmente depois que Curi se aliou a Dualib e passou a freqüentá-lo.
A sala de Dualib fica no quinto andar. É decorada com uma foto do presidente Lula e a taça do Mundial, que também alimenta as intrigas políticas. Desafetos de Dualib dizem que se trata de uma réplica e que a verdadeira está na casa do presidente, o que ele nega.
Após almoçar no restaurante, Dualib costuma receber conselheiros, vices e convidados em sua sala. Os vices Fran Papaiordanou, Curi, Osmar Stabile e o conselheiro Jorge Kalil entram sem ser anunciados na sala. O vice Antonio Roque Citadini raramente aparece desde a chegada da MSI.
Em alta, está o empresário Renato Duprat, que intermediou a parceria e também tem livre acesso. Todo final de tarde, ocorrem discussões do presidente com os aliados em sua sala. A liberdade dos habitués é tanta que, sem cerimônia, interrompem entrevistas do presidente para emitir opiniões contrárias à dele até em questões sobre troca de técnico. O tema principal é a parceria, Depois, vem o esforço para manter o Parque São Jorge, uma "cidade" com 7.000 associados e que consome mais de R$ 1 mi por mês.
Depois de despachar, Dualib gosta de mostrar a convidados as obras do memorial e do auditório, para 400 pessoas. Ficam no térreo, ao lado da loja do clube, bem numa das portarias. Na outra, fica uma academia aberta ao público. "Isso aqui deixou de ser uma fazenda e virou um clube", diz Dualib, apesar das galinhas e dos outros bichos que ainda habitam o solo corintiano. (EDUARDO ARRUDA E RICARDO PERRONE)

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