São Paulo, sábado, 6 de junho de 1998

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CARLOS HEITOR CONY

Baixo astral

Faz parte de nossa maneira de caminhar pelo mundo. Somos um povo assanhado, mas qualquer dificuldade, qualquer ameaça de tropeço fazem a gente desabar. Conflitando com a realidade do dia-a-dia que dura há quase 500 anos, não temos vocação para os segundos lugares. Apesar de medíocres e profanos, como Horácio odiamos o vulgar e o profano, "odi profanum vulgus".
Daí que a imprensa francesa começa a reclamar de nossa investida mediática, que traduzida em vernáculo significa nossa capacidade de criar notícias que ocupem a mídia. A dispensa de Romário podia ter sido um fato normal, mas houve tanta fofoca, tantas informações contraditórias e despeitadas que obrigaram a mídia internacional a se preocupar não apenas com a barriga da perna do jogador, mas com a pátria inteira, nela incluindo nossas verdes matas, nossas borboletas de asas azuis e nossas lindas cascatas.
Nem havia acabado o caso Romário e logo surgiu outro caso, este bem mais chegado à maledicência e, por isso, bem mais letal do que o primeiro. Rosnou-se durante a semana, ao longo do Sena, das naves sombrias da Notre Dame ao ensolarado jardim de Luxemburgo, que saiu briga feia entre os jogadores brasileiros, que Edmundo (sempre ele) havia agredido um companheiro, que apesar dos 3 a 0 em cima de Andorra o futebol brasileiro atravessa fase lastimável.
Os entendidos, que abundam por aqui, com enormes credenciais penduradas no pescoço, exibem aquilo que antigamente chamavam de "sobrolho preocupado", achando que nada vai dar certo. Mas os turistas brasileiros que andam nas ruas com camisas amarelas, falando alto e gastando pouco, esses não estão nem aí.
Para eles, o Brasil é campeão por decreto, somos um celeiro de craques, se os 11 ou 22 jogadores pifarem, é chamar qualquer poste, ou 22 postes do Catumbi ou do Brás, que dá na mesma. Mais ou menos como será na próxima eleição presidencial. Qualquer poste será melhor do que FHC, mas a Fifa e a Justiça Eleitoral ainda não aceitam a participação de postes nessas contenda, a menos que os regulamentos sejam mudados, o que não é difícil.
Enquanto o Brasil cria, agora diariamente, fatos ou quase-fatos que ocupam a mídia, a Argentina recolheu-se a um comportamento ascético, conventual. Nada de noviços rebeldes, mas conformados operários da bola. O técnico Passarella espalhou pela concentração avisos que poderiam estar nas paredes de qualquer monastério medieval: "Seriedade - Humildade - Sacrifício".
Sou de um tempo em que a Argentina entrava em campo com navalhas escondidas na meia, como no tempo dos Bórgias, que, sendo espanhóis, eram ancestrais dos Batistuta, Ortega, Gallardo e Simeone. Para compensar, ainda temos Edmundo, que sozinho vale por todos eles.



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