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FUTEBOL
O elogio do corta-luz
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Agora que acabou a Copa,
podemos voltar a falar de futebol. Calma, eu explico.
É que a Copa do Mundo mobiliza tantas e tão complexas paixões
que, ao comentar suas partidas,
raramente estamos falando do jogo em si, mas sim de outras coisas:
da nossa necessidade de afirmação como país, da busca de uma
identidade cultural, de nossos recalques e esperanças e do que
mais vocês quiserem.
Alguns leitores me pediram um
balanço do Mundial e da participação do Brasil nele.
Mas isso já foi feito aqui mesmo
na Folha, com muito mais propriedade, por craques como Beckenbauer e Tostão. Teria pouco a
acrescentar.
Resolvi, então, me concentrar
num único lance de toda a Copa,
pela contribuição que ele pode
dar a uma gramática, uma sintaxe e uma estilística do futebol
-obra coletiva e contínua, realizada por incontáveis praticantes
e estudiosos do jogo da bola.
Estou me referindo ao corta-luz
de Rivaldo, deixando a bola passar para Ronaldo fazer o segundo
gol do Brasil na final contra a
Alemanha.
O corta-luz é, entre todas as jogadas do futebol, uma das mais
belas e plenas de sentido.
Já me referi aqui à bola entre as
pernas como uma violação simbólica do adversário, que junta os
joelhos instintivamente, como
uma virgem resistindo ao estupro
-mas, que pena, tarde demais.
A humilhação de quem toma
uma bola entre as pernas (uma
"janelinha", como dizem os gaúchos) é a de alguém que foi, simbolicamente, currado diante de
uma multidão de testemunhas.
Já o chapéu implica outro tipo
de humilhação. Assim como, nas
brincadeiras infantis, pular por
cima de outra criança significa
condená-la a "não crescer mais",
o chapéu diminui o oponente, reduzindo-o à dimensão mais rasteira, lembrando-o de sua impossibilidade de atingir as alturas.
Pelo resto da partida, essa sensação de limite pairará como
uma laje sobre o jogador. "Vai jogar na sombra", como dizem os
torcedores.
A meia-lua (ou "drible da vaca") impõe ao adversário o castigo da desorientação.
Ao separar-se momentaneamente da bola, jogando-a por um
lado e correndo pelo outro, o driblador impõe ao driblado uma
vertiginosa paralisia.
Todos esses lances são maravilhosos, mas o corta-luz é ainda
mais bonito, por no mínimo dois
motivos.
O primeiro deles é seu caráter
solidário. O jogador que faz o corta-luz não tira pessoalmente proveito da jogada. Deixa tudo -a
bola, o campo livre- para o companheiro de time. Em geral, também o estrago que causa é coletivo: ao deixar passar uma bola
que parecia sua, o atleta engana
todo um conjunto de adversários,
não apenas um.
No caso Rivaldo-Ronaldo, toda
a defesa alemã, incluindo o goleiro Oliver Kahn, foram pegos no
contrapé. Armavam-se para se
defender de Rivaldo e quando se
voltaram para Ronaldo já era
tarde demais.
A segunda razão da "superioridade" do corta-luz, a meu ver, é
seu caráter sutil, minimalista.
Quem o pratica nem precisa tocar
na bola -aliás, não pode e não
deve tocá-la.
Por conta disso, é um lance que
sintetiza como poucos a idéia de
que o futebol é, acima de tudo,
um jogo mental. É a vitória da arte contra a força bruta, e por isso é
tão lindo.
Lições da festa
O ataque ao ônibus dos campeões, no Rio, tornou literal o
verso de Augusto dos Anjos:
"A mão que afaga é a mesma
que apedreja". A ensandecida maratona em que se transformou a festa revelou, além
da desorganização, do improviso e da avidez por ganhos políticos e comerciais, a
assustadora carência por heróis. Quem diria que um Belletti, vaiado no Morumbi, seria saudado como semideus?
Resumo da ópera
Minha avaliação sucinta da
campanha brasileira na Copa: o Brasil jogou melhor
contra rivais mais fortes e tradicionais (Inglaterra e Alemanha). Nas outros jogos,
praticou um futebol desordenado, de pouco sentido coletivo, compensado por lampejos de talento. Contra a Bélgica e nos dois jogos contra a
Turquia, corremos sério risco
de perder. Ganhamos todas,
mas isso não apaga o que vi.
E-mail jgcouto@uol.com.br
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