São Paulo, sábado, 06 de julho de 2002

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FUTEBOL

O elogio do corta-luz

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Agora que acabou a Copa, podemos voltar a falar de futebol. Calma, eu explico.
É que a Copa do Mundo mobiliza tantas e tão complexas paixões que, ao comentar suas partidas, raramente estamos falando do jogo em si, mas sim de outras coisas: da nossa necessidade de afirmação como país, da busca de uma identidade cultural, de nossos recalques e esperanças e do que mais vocês quiserem.
Alguns leitores me pediram um balanço do Mundial e da participação do Brasil nele.
Mas isso já foi feito aqui mesmo na Folha, com muito mais propriedade, por craques como Beckenbauer e Tostão. Teria pouco a acrescentar.
Resolvi, então, me concentrar num único lance de toda a Copa, pela contribuição que ele pode dar a uma gramática, uma sintaxe e uma estilística do futebol -obra coletiva e contínua, realizada por incontáveis praticantes e estudiosos do jogo da bola.
Estou me referindo ao corta-luz de Rivaldo, deixando a bola passar para Ronaldo fazer o segundo gol do Brasil na final contra a Alemanha.
O corta-luz é, entre todas as jogadas do futebol, uma das mais belas e plenas de sentido.
Já me referi aqui à bola entre as pernas como uma violação simbólica do adversário, que junta os joelhos instintivamente, como uma virgem resistindo ao estupro -mas, que pena, tarde demais.
A humilhação de quem toma uma bola entre as pernas (uma "janelinha", como dizem os gaúchos) é a de alguém que foi, simbolicamente, currado diante de uma multidão de testemunhas.
Já o chapéu implica outro tipo de humilhação. Assim como, nas brincadeiras infantis, pular por cima de outra criança significa condená-la a "não crescer mais", o chapéu diminui o oponente, reduzindo-o à dimensão mais rasteira, lembrando-o de sua impossibilidade de atingir as alturas.
Pelo resto da partida, essa sensação de limite pairará como uma laje sobre o jogador. "Vai jogar na sombra", como dizem os torcedores.
A meia-lua (ou "drible da vaca") impõe ao adversário o castigo da desorientação.
Ao separar-se momentaneamente da bola, jogando-a por um lado e correndo pelo outro, o driblador impõe ao driblado uma vertiginosa paralisia.
Todos esses lances são maravilhosos, mas o corta-luz é ainda mais bonito, por no mínimo dois motivos.
O primeiro deles é seu caráter solidário. O jogador que faz o corta-luz não tira pessoalmente proveito da jogada. Deixa tudo -a bola, o campo livre- para o companheiro de time. Em geral, também o estrago que causa é coletivo: ao deixar passar uma bola que parecia sua, o atleta engana todo um conjunto de adversários, não apenas um.
No caso Rivaldo-Ronaldo, toda a defesa alemã, incluindo o goleiro Oliver Kahn, foram pegos no contrapé. Armavam-se para se defender de Rivaldo e quando se voltaram para Ronaldo já era tarde demais.
A segunda razão da "superioridade" do corta-luz, a meu ver, é seu caráter sutil, minimalista. Quem o pratica nem precisa tocar na bola -aliás, não pode e não deve tocá-la.
Por conta disso, é um lance que sintetiza como poucos a idéia de que o futebol é, acima de tudo, um jogo mental. É a vitória da arte contra a força bruta, e por isso é tão lindo.

Lições da festa
O ataque ao ônibus dos campeões, no Rio, tornou literal o verso de Augusto dos Anjos: "A mão que afaga é a mesma que apedreja". A ensandecida maratona em que se transformou a festa revelou, além da desorganização, do improviso e da avidez por ganhos políticos e comerciais, a assustadora carência por heróis. Quem diria que um Belletti, vaiado no Morumbi, seria saudado como semideus?

Resumo da ópera
Minha avaliação sucinta da campanha brasileira na Copa: o Brasil jogou melhor contra rivais mais fortes e tradicionais (Inglaterra e Alemanha). Nas outros jogos, praticou um futebol desordenado, de pouco sentido coletivo, compensado por lampejos de talento. Contra a Bélgica e nos dois jogos contra a Turquia, corremos sério risco de perder. Ganhamos todas, mas isso não apaga o que vi.

E-mail jgcouto@uol.com.br



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