São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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FUTEBOL

Alegria: o gol do Ronaldinho

BENTO PRADO JÚNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

É rara a perfeição e é com dificuldade que lhe emprestamos fé, quando a vemos explodir, inesperadamente, a nossos olhos.
Assim foi o gol, de bola parada, feito pelo Ronaldinho contra os ingleses, nas quartas-de-final da Copa do Mundo deste ano.
É claro que muitos disseram:
- Foi por acaso, não foi intencional.
Mas isso é o discurso dos ressentidos ou, no melhor dos casos, daqueles que jamais jogaram futebol, que não têm olhos de ver a bola, as jogadas, o possível e o impossível e que confundem (por não saber filosofia) o resultado incerto com o mero efeito casual.
É certo que há gols inteiramente casuais e que podem (mas isso implica em "erro de categoria") ser considerados "bonitos".
É o caso, por exemplo, do gol feito por um lateral-direito da seleção brasileira (de cujo nome não me lembro, que teve uma brilhante, mas curta, carreira no futebol e que a encerrou por participar de feitos criminais).
Ele pegou a bola no meio do campo, levantou a cabeça, viu os atacantes brasileiros que avançavam e tentou lançar-lhes a bola (digamos, um "chuveirinho" à distância, ou melhor, um "chuveirão" homérico).
Quis o acaso (o vento, a pressão atmosférica, a temperatura, tudo enfim que não depende da jogada e da intenção e que a precede como a natureza nos precede) que a bola flutuasse em direção ao ângulo direito do goleiro adversário, contra todas as expectativas, tanto as do atacante como a do defensor.
Era um gol indefensável, certamente, mas também um gol involuntário.
No momento em que vi aquela cena, percebi o paradoxo: o gol era lindo, mas carregava consigo uma falha: não era a obra de um artista, mas um puro fenômeno natural.
Seria, talvez, sublime, como um penhasco infinito que nos devolve à nossa insignificância humana.
Ao contrário do que dizem alguns imbecis voluntários -numa expressão que imita o vocabulário de Nelson Rodrigues, que também era cronista esportivo; mas que faz exceção para o Tostão, que escreve neste espaço, é excelente cabeça, foi grande jogador e que viu a jogada de outra maneira-, o gol do Ronaldinho foi muito diferente.
Para quem já jogou futebol, como eu, estava na cara.
A começar pela posição, bastante adiantada, do goleiro inglês David Seaman, que era tão cético quanto Hume (que não era propriamente inglês).
Eu quase gritei:
- Chuta no gol!
Não deu outra.
Já a maneira como Ronaldinho correu para a bola, a força do impacto do pé direito na chamada "esférica", tudo, enfim, mostrava a intenção clara de agredir o arco do adversário.
Ninguém "centraria" uma bola com aquela violência e aquela volúpia.
Ele chutou no gol (como é evidente para quem se guia por idéias claras e distintas) e, maravilhosamente, acertou.
Isto dito, é preciso acrescentar que, à intenção, ao talento, à arte, acrescentou-se uma pequena ponta de acaso -jamais somos soberanos na natureza.
Era preciso que o regime dos ventos, que a natureza anônima e irresponsável, que tudo que escapava à intenção original, que o Kairos (como os gregos denominavam o puro acaso ou a boa oportunidade), que tudo isso viesse paradoxalmente como que corrigir a intenção original, para depurá-la de suas imperfeições, fazendo-a coincidir, finalmente, consigo mesma.
Como se, por milagre, num instante, a natureza se tornasse cúmplice, uma espécie de pista de esqui muito bem feita, para permitir ao atleta atingir seu fim sem nenhum atrito.
Uma espécie de "perfeição" que os homens acreditam encontrar, por exemplo, nos diamantes: esse bruto produto natural que parece exprimir a mais sofisticada inteligência geométrica.
Mas esse diamante não nos foi dado pela natureza ou pelo regime dos ventos.
Ele foi produzido intencionalmente pelo Ronaldinho, o gaúcho, que quis botar a bola no ângulo inacessível ao guarda-metas da Inglaterra.
E ele conseguiu.
Que felicidade!


Bento Prado Júnior é professor da Universidade Federal de São Carlos

Excepcionalmente hoje não é publicada a coluna de Tostão


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