São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2001

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FUTEBOL

Diálogo imaginário

TOSTÃO
COLUNISTA DA FOLHA

Na última noite, Felipão demorou a dormir, preocupado com a partida contra o Chile. O treinador permaneceu várias horas sonolento, em estado de transição entre a consciência e a inconsciência, entre a razão e o sonho.
De repente, ouviu uma voz estranha. Não era de homem nem de mulher; de criança nem de adulto; de gaúcho nem de alguém de outro Estado brasileiro.
Talvez fosse a voz do inconsciente, das profundezas da alma, do seu alter ego (uma pessoa real ou imaginária) ou de um palpiteiro do além, inconformado com as más atuações da seleção.
Aí começaram um bate-papo.
- O que te preocupa tanto?, perguntou a voz.
- Se o Brasil não se classificar, ficarei na história como o único treinador que conseguiu essa "proeza".
- Isso só acontecerá se a seleção cometer erros absurdos. Além disso, a vida é feita de fracassos e de sucessos. A maioria vai reconhecer suas qualidades e títulos.
- Sei lá! Já tinha decidido a escalação e a tática da equipe desde sexta-feira e agora estou em dúvida. Não sei se escalo dois ou três zagueiros.
- Se a equipe jogar com três zagueiros, dois laterais e dois volantes, ficará muito defensiva. Perde-se um armador ou atacante, e o terceiro zagueiro fica sem função.
- É assim que joga a maioria das equipes no mundo, retrucou o técnico.
- É verdade. Mas um erro não justifica o outro. Se optar pelos três zagueiros, por que não escala somente um volante e um meia pela direita (Juninho) e outro pela esquerda (Rivaldo)?
- Desse jeito a defesa fica muito desprotegida.
- Ficará se os zagueiros jogarem muito atrás, os meias e os atacantes estiverem lá na frente e os alas atuarem próximos das linhas laterais. Aí ficará um vazio no meio-de-campo. Se o time marcar por pressão, com os alas atuando ao lado do volante e os meias participando da marcação, formando um bloco, o Brasil terá a posse de bola a maior parte do jogo e no campo do adversário. Aí vai precisar de jogadores habilidosos. Além disso, a seleção tem três zagueiros para marcar no máximo dois atacantes. Para que mais defensores?
- Gosto muito do esquema da Argentina, divaga o técnico.
- É mais ofensivo ainda. São três zagueiros, três médios (dois alas e um volante) e um armador na ligação com os três atacantes. Esses quatro poderiam ser o Ronaldinho pela direita, o França no centro, o Rivaldo pela esquerda e o Juninho, que viria de trás.
- É arriscado mudar a tática nesse jogo decisivo. O time não treinou assim.
- Talvez tenha razão, ponderou a voz. Então é melhor jogar no esquema tradicional brasileiro, com dois zagueiros, dois laterais, dois volantes, um meia de cada lado (Juninho e Rivaldo) e dois atacantes. Depois que o Brasil se classificar, você poderá experimentar algo diferente.
- Não sei também quem escalo no ataque. São seis jogadores para duas posições.
- Eu escalaria um ataque mais leve, habilidoso e ofensivo, com França e Ronaldinho, além do Juninho e do Rivaldo. Deixaria o Denílson como opção.
- Você é também um romântico, saudosista. Parece com esses jornalistas que escrevem, apagam e depois reescrevem. Assim é muito fácil.
- São funções diferentes. A do jornalista é opinar, questionar e divagar. A do técnico é escalar e ajudar o time a jogar bem.
- O futebol ofensivo, de toques e dribles bonitos, não existe mais. Acabou o futebol arte. O importante é a pegada (com bastante faltas se necessário), velocidade, jogadas ensaiadas e malandragem. O restante é fantasia e frescura.
- Como vocês técnicos não conseguem unir a marcação e a disciplina tática com o talento, a eficiência e a ofensividade, escolhem o caminho mais fácil, feio e improdutivo. Essa é a principal causa do mau futebol brasileiro.
- Chega de conversa fiada! Suas opiniões só serviram para me confundir.
Cansado, Felipão dormiu profundamente. Sonhou com uma bela partida. A seleção jogava um futebol descontraído, leve, empolgante e ofensivo. Sufocava o adversário desde o início. Vencia e brilhava. A torcida vibrava e aplaudia de pé. A imprensa elogiava a equipe. Renascia o futebol bonito e eficiente.
Não sei se o Felipão acredita em sonhos. Mas a essência da vida é o sonho.

E-mail tostao.folha@uol.com.br



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