São Paulo, sábado, 08 de maio de 2010

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JOSÉ GERALDO COUTO

O discurso messiânico


O torcedor corintiano, inflado e embriagado pela propaganda, não quis ver o desastre que se anunciava


NA RESSACA que se seguiu ao fracasso corintiano na Libertadores, não admira que o principal astro do time, Ronaldo, tenha adotado um discurso messiânico: "O povo está comigo".
O messianismo talvez esteja presente em toda torcida apaixonada, de qualquer clube, mas no Corinthians ele assume a condição de traço essencial, fundador. Um torcedor que faz do sofrimento o valor mais elevado só pode ter, como um cristão primitivo, os olhos voltados para uma mítica redenção.
O ano do centenário seria uma época propícia para esse tipo de sentimento. E assim foi feito. Como sempre na história do clube, seus dirigentes insuflaram as esperanças e as ilusões da fiel torcida, apostando todas as fichas na Libertadores, torneio em que o Corinthians nunca foi bem. Conquistar a taça seria abrir as portas do reino dos céus.
Ocorre que se pensou muito mais no marketing, na propaganda e na badalação do que nas tarefas concretas de formação de uma equipe competitiva. Como se um campeonato continental pudesse ser conquistado na base de slogans.
Vemos todos os dias os governos (federal, estaduais, municipais) gastarem fortunas em propaganda para esconder falhas e limitações de sua atuação real. No Corinthians, aconteceu mais ou menos a mesma coisa.
A diferença é que, no futebol, há um campo de testes muito concreto e implacável, que é o próprio campo de jogo, aquele de grama, retangular, com um gol em cada extremidade.
Ali se dá a hora da verdade. Ali todos os discursos são submetidos ao crivo da comprovação.
E nesse campo o Corinthians fracassou. Que me desculpem os corintianos que sofreram até o fim com o time, mas o desastre já estava anunciado havia um bom tempo.
Não fui o único que escrevi a respeito. Era evidente que o "projeto" do centenário estava montado de cabeça para baixo. A construção de uma equipe competitiva tinha ficado em segundo plano.
Analisando friamente, por trás da cortina de lantejoulas da propaganda, o que aconteceu no Parque São Jorge de um ano para cá?
Desmanchou-se um time sólido, altamente competitivo, e montou-se um frankenstein com jogadores caros e fora de sua melhor forma, em número excessivo para determinadas posições e escasso para outras.
Gastou-se muito, ganhou-se muito (sobretudo em receitas publicitárias), afastou-se o torcedor mais popular (devido à inflação dos preços dos ingressos), que é a seiva vital do clube. Não sei se as contas batem, se houve lucro ou prejuízo. Não sei se o "produto Corinthians" se valorizou ou não. Não sou especialista em bolsa de mercadorias.
Só sei que em campo o Corinthians fracassou. Agora tem que juntar os cacos para não fazer feio no Brasileirão e, se possível, beliscar vaga para a Libertadores de 2011. Como Sísifo, tem de carregar de novo a pedra para cima da montanha. Por que a maioria dos corintianos não viu esse filme que se desenrolava, nítido, diante dos seus olhos? A explicação, penso eu, tem a ver com esse messianismo atávico, com essa necessidade de acreditar, contra toda evidência, numa redenção iminente, na chegada à porta do céu depois de um século de sofrimento.

jgcouto@uol.com.br


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