São Paulo, sexta-feira, 09 de junho de 2006

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ARTIGO

Drama e heroísmo

Eu assisti a sete finais de Copa, e cada uma ofereceu momentos peculiares

HENRY A. KISSINGER

A ALEMANHA dará início hoje a um mês de frenesi futebolístico ao disputar, contra a Costa Rica, a partida de abertura da Copa do Mundo de 2006. Bilhões de pessoas em todo o mundo não despregarão os olhos de suas TVs, dia e noite; milhões delas descobrirão maneiras de suspender seu trabalho pelo tempo suficiente de assistir pelo menos a algumas das 64 partidas. O moral nacional dos vencedores e dos derrotados será afetado. Eu serei um desses telespectadores, e organizei minha agenda de modo a acomodar as necessidades futebolísticas. A maioria dos torcedores encontraria dificuldade para explicar o que exatamente os encanta tanto no futebol. Provavelmente mencionariam a adesão apaixonada ao seu time favorito, uma paixão que, nos Estados Unidos, só é compartilhada pelos mais fervorosos entusiastas de times de futebol americano. Cresci em Fürth, uma pequena cidade no sul da Alemanha, onde o futebol era tão importante quanto o futebol americano é em Green Bay, Wisconsin. O time local venceu a Copa da Alemanha três vezes, quando eu era menino. Já deixei de viver na Alemanha há muito mais décadas do que gostaria de admitir, mas continuo a acompanhar as fortunas da equipe, que na era dos altos salários se viu relegada à segunda divisão. Fürth às vezes parece destinada a voltar à primeira divisão, mas sempre consegue fracassar no momento decisivo, o que garante a mistura de miséria e esperança que caracteriza a vida dos viciados em futebol. As emoções evocadas pelos times se comparam àquelas que as seleções nacionais causam da mesma maneira que um riacho bravio se compara às cataratas de Niágara. Os times jogam pelo menos uma vez por semana, entre agosto e junho. As seleções disputam uma fração desse número de partidas a cada ano, e o maior dos prêmios só entra em jogo a cada quatro anos. Não existe margem de erro para adiar a paixão. Eu assisti a sete finais de Copa do Mundo. Cada uma ofereceu momentos dramáticos muito peculiares. Minha primeira experiência aconteceu em 1970, na Cidade do México, onde fui apresentado ao estilo exuberante do futebol brasileiro. Liderada pelo incomparável Pelé e composta por um elenco de virtuoses, a seleção brasileira massacrou a Itália por 4 a 1. Embora o ataque tenha triunfado em 1970, em 1974 uma alteração inesperada de ênfase ajudou a reverter a situação na final disputada entre Holanda e Alemanha. A seleção holandesa era elegante e pensava no ataque, inspirada por um dos grandes jogadores da história, Johan Cruyff. Um pênalti deu a vantagem aos holandeses no primeiro minuto. Os alemães, jogando em casa e comandados por Beckenbauer, passaram a atacar insistentemente, com o apoio de uma torcida frenética. Isso lhes rendeu a virada, 2 a 1, que sustentaram até o final. Em 1978, a Holanda se viu uma vez mais diante de uma torcida fervorosa, em Buenos Aires. Os holandeses no último minuto empataram o jogo contra uma seleção argentina que jogava com ousadia brasileira e instinto matador europeu. Mas, como acontecera quatro anos antes, eles foram derrotados na prorrogação. A vitória propiciou uma pausa na violenta repressão que afligia a Argentina. Por 48 horas, Buenos Aires celebrou com abandono descontrolado. Em 1982, o drama aconteceu antes da final, quando a Itália derrotou a mais vistosa de todas as seleções brasileiras, usando seus mortíferos contra-ataques para explorar a irresponsabilidade dos brasileiros. Não pude comparecer à final de 1986. Em 1990, em um jogo muito tático e defensivo, assisti a uma vitória da sistemática seleção alemã contra um time argentino que substituiu a habitual destreza de seus futebolistas pelo jogo duro. Para mim, a final mais decepcionante foi a da Copa de 1994. Como presidente honorário do Comitê Organizador, minha esperança era de um jogo de muitos gols, que fizesse pelo futebol nos EUA o que a partida entre Giants e Colts fez em 1958 para despertar o interesse pelo futebol americano profissional. Infelizmente, o jogo terminou decidido nos pênaltis, depois de 120 minutos de manobras táticas que resultaram em gol nenhum. A final de 1998 apresentou um mistério. Uma elegante seleção francesa derrotou o Brasil, que, depois de vitória brilhante sobre a Holanda nas semifinais, caiu em inexplicável letargia na partida decisiva. No total, das sete finais a que assisti, vi Brasil, Itália e Alemanha três vezes, e Holanda e Argentina, duas. A posição restante coube à França. Será que este grupo de elite será ampliado na Copa da Alemanha? É difícil prever. Os EUA enfrentarão um difícil grupo inicial e, para chegar às oitavas, terão de superar pelo menos uma potência européia, Itália ou República Tcheca. A Inglaterra dispõe de jogadores com qualidade suficiente para se destacar. Nas eliminatórias, a Argentina venceu mais jogos do que qualquer outro país, incluindo o Brasil, mas sua compostura nem sempre iguala seu talento. A Itália parecia esmagadora ao derrotar a Alemanha meses atrás e pode avançar, a não ser que o escândalo de arbitragem que abalou o futebol do país a prejudique. O time alemão é um enigma. O novo técnico é brilhante e inventivo, e o apoio da torcida é apaixonado. Mas, nos amistosos, a equipe encontrou problemas contra oponentes fortes. Talvez seja este o ano em que as seleções africanas emergirão; seu brilhantismo técnico até agora vem sendo prejudicado pela falta de experiência internacional. Na Copa passada, duas equipes asiáticas -Coréia do Sul e Japão- mostraram grande progresso. O presente torneio servirá para mostrar que proporção desse avanço se deve a terem jogado em casa. E há sempre o Brasil, que garante diversão e torcedores exuberantes. Saberemos a resposta em 9 de julho. Enquanto isso, os 64 jogos em um mês bastam para saciar a sede dos mais frenéticos torcedores, entre os quais me incluo.


Tradução de Paulo Migliacci
HENRY A. KISSINGER , 83, foi secretário de

Estado dos EUA entre 1973 e 1977 e ganhou o Nobel da Paz em 1973


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