São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2007

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roupa suja

"Eles vão comprar para lavar dinheiro"

Gravações mostram como funcionava a parceria entre o Corinthians e a MSI

JUCA KFOURI
COLUNISTA DA FOLHA

Por mais que pareça ficção, o que se lerá aqui é uma história verídica, repleta de cenas de intrigas, mentiras, ciúmes entre homens, deslizes, traições, ameaças e até um romance com final feliz, passando por gabinetes bem próximos ao do presidente da República, no Palácio do Planalto, além de seu próprio gabinete.
Tudo gravado, com autorização judicial, pela Polícia Federal, e resumido em um relatório do órgão, de 72 páginas, a que a Folha e a revista eletrônica "Terra Magazine" tiveram acesso, como, ao menos, um dos advogados de pessoa citada.
E a história tem nome, como é habitual nas ações da Polícia Federal: Operação Perestroika.
O mote foi a parceria Corinthians/MSI.
Tudo começa com uma conversa entre Kia Joorabchian e o jogador Ricardinho, na qual o atleta é informado que "conforme combinaram, o dinheiro vai ser pago hoje, mas que acha que só vai ser creditado amanhã, pois está pagando fora do país".
Ricardinho, então, pergunta se será avisado do crédito, e Joorabchian diz que sim ao pedir que ele fale com o advogado da parceria, Alexandre Verri, "para confirmar a transação".
Joorabchian informa que o crédito é de US$ 1,144 milhão.
Quantias dessas são o que há de mais comum nas conversas.
No dia 14 de agosto de 2006, por exemplo, às 12h16, a noiva de Joorabchian, a advogada Tatiana Alonso, informa ao homem do futebol da parceria, Paulo Angioni, que conversou com o noivo e este disse que só poderia dar R$ 400 mil por mês para o técnico Emerson Leão, o que derruba a versão de que a MSI não participou da transação por não concordar com ela.
Pouco menos de uma hora depois, Angioni liga para Tatiana e conta que Alberto Dualib se comprometeu a pagar a diferença de R$ 100 mil com dinheiro da Federação Paulista.
E, ainda no mesmo dia, Angioni diz a Renato Duprat que Leão pediu R$ 3 milhões no ato da contratação, o mesmo valor dali a um ano e mais R$ 1 milhão se classificar o Corinthians para a Libertadores.
Duprat, por sinal, como se verá, não será coadjuvante neste enredo, e impressionará pela capacidade de ludibriar.
No mesmo dia 14, sem que uma coisa tenha a ver com a outra, Angioni diz para Duprat que o meia-atacante Marcelinho tem que sair do clube e Duprat informa que já acertou a saída dele com Boris Berezovski. Fica claro que, embora também alardeasse ser contrária à contratação do jogador, era a MSI quem pagava o salário e os direitos de imagem dele.
No dia seguinte, 15, Angioni relata que a FPF antecipará R$ 2 milhões para pagar Leão a título de empréstimo que será pago apenas no ano seguinte.
Já no dia 21, Angioni comunica a Nojan Bedroud, diretor da MSI, que "está deixando a empresa, porque prefere trabalhar com Kia fora do Corinthians".
Dinheiro, por dentro, por fora, emprestado.
Dinheiro que leva Gisele, ex-mulher de Carlos Alberto, que hoje está no futebol alemão, a deixar uma ameaça gravada em seu celular, exatamente às 11h10 do dia 5 de setembro, dizendo que "vai abrir a boca sobre o depósito do salário que é feito metade aqui e metade na Suíça". E garante ter comprovante em mãos.
Enquanto isso, de Londres, repetidas vezes Duprat fala com Dualib e promete não só resolver rapidamente o envio de dinheiro para pagar as contas do clube como a própria sucessão de Joorabchian na MSI, além de garantir que falta pouco para legalizar a entrada de Berezovski no Brasil.
Mas o agosto alvinegro segue.
No dia 26, Joorabchian diz para a noiva que Berezovski considera Leão um "idiota" e que o Corinthians é "uma bagunça política".
Impaciente, Tatiana diz ao noivo que eles estão trabalhando muito no Brasil e que Berezovski está brincando com a vida deles. E apela para que ele saia "dessa bagunça, abandone essa merda".
Setembro chega, mas a crise permanece.
O casal Kia/Tatiana volta a se falar no dia primeiro e ele se queixa de que o jornal "Financial Times" noticiou seu interesse pela compra do West Ham, o que nega: "Apenas pusemos o Tevez e o Mascherano lá porque não tínhamos outra opção", explica, para ouvir de volta "que talvez isso seja um aviso, não quero passar em Londres pelo que estamos passando no Brasil, vamos tocar os negócios do seu pai, porque o Boris é um bilionário, não faz nada na vida, só besteiras, que nem consegue avaliar as conseqüências de suas intervenções idiotas, porque sabe que nada o atinge, diferentemente deles (Tatiana e Kia), pessoas normais, com empregos normais".
Joorabchian concorda e conta que discutiu com Berezovski num restaurante e disse a ele "não ter bilhões nem ter escolhido a vida política".
De Londres, Dualib reclama de falta de dinheiro e manifesta preocupação, no dia 25, ao dizer que a conta do hotel vai ser de "100 pau" e que "100 pau", no cartão dele, "na hora" o imposto de renda pega.
Desde o "escândalo Ivens Mendes" que o presidente corintiano parece ter problemas com o "um-zero-zero"...
Só que os problemas do futebol brasileiro parecem coisa de criança quando confrontados com os dos parceiros que o Corinthians arrumou, sem nem ter a desculpa de que não sabia com quem estava se metendo.
Exemplo disso é o diálogo entre Dualib e Duprat, no dia 8 de outubro, precisamente às 17h52, o primeiro em Londres, o segundo em São Paulo.
Duprat revela que o "pessoal de Badri Patarkatsishvili (o empresário georgiano sócio de Berezovski) está preocupado com a situação na Geórgia e que ele está mandando toda sua família para Londres".
Dualib aconselha que ele saia da Geórgia, "antes que o matem" e acrescenta que Andrés Sanches, que se apresenta como líder da oposição no clube, "está sabendo o que falar na Federal, porque depois da nota oficial da MSI que desmente a participação de Berezovski na parceria, ninguém mais pode falar em Boris, o Boris acabou, tá fora e se ele (Andrés) falar o que o Boris é, fode com tudo".
Duprat concorda: "Boris não é, é o Badri que é".
Exatos 48 minutos depois dessa conversa, Sanches quer saber o que Dualib e Nesi Curi, vice-presidente do Corinthians, vão falar na PF, para que ele também fale.
Dualib então revela que pedirá adiamento do depoimento e que Sanches deve fazer o mesmo porque é preciso saber antes, com o pessoal em Londres, o que foi que Berezovski disse em seu depoimento quando detido em São Paulo.
Sanches topa e acrescenta que mandará seu advogado tentar o adiamento. "Vou falar o que vocês falarem."
Estranhamente, Dualib encerra a ligação com o comentário: "Quem acompanhou o depoimento do Berezovski foi o Duprat, e eu não estou conseguindo falar com ele"... De fato, ninguém confia em ninguém.
Tanto que, em seguida, Dualib volta a falar com Duprat para informá-lo do que conversara com Sanches. Duprat o aconselha a não confiar nele, e Dualib argumenta que, "se ele foi chamado, é porque também está envolvido".
E pede que "Londres fale com Marco Polo Del Nero" (presidente da FPF e advogado) para que todos recebam a mesma orientação. Duprat promete falar com Marco Polo.
Entre tantas angústias, a falta de dinheiro continua.
No dia 10 de outubro, Curi pergunta a Duprat se o dinheiro já chegou, e ele diz que o assunto está sendo discutido naquele momento, que Berezovski está na sua frente. Curi fala para Duprat cobrá-lo porque ele prometera o dinheiro imediatamente, mas o próprio explica que "quem manda dinheiro é o Badri, não o Boris", e que Badri está por chegar.
São inúmeras, mais de vinte, as conversas semelhantes entre Duprat e a direção corintiana, sem que o dinheiro apareça.
E ainda não se chegou à novela sobre como Berezovski entraria no Brasil, outra vez com Duprat intermediando.
O fim da novela é conhecido: Berezovski não veio e está, assim como Joorabchian, com mandado de prisão e acusado de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, a exemplo do que acontece, em relação aos dois últimos itens, com Dualib, Curi, Duprat, Angioni e Verri, o advogado da parceria, do escritório Veirano, o mesmo de Tatiana Alonso, agora esposa de Joorabchian.
Mas os capítulos da novela são também interessantes e serão contados mais adiante.
No dia 12 de outubro, Duprat conversa com alguém não identificado e diz que "parece que Verri entregou tudo, fez um estrago em seu depoimento, que a PF até ficou surpresa com tanta informação, parece até que ele quer ferrar o Kia, que ele mostrou direitinho como é a operação, como vem de fora".
Duprat ainda opina que "a única coisa que parece irregular é a compra de jogadores e que sabe pelo Dualib que o Corinthians tem uma conta em Nova York ainda do tempo da parceria com a Hicks&Muse".
Ao ser perguntado se sabe quem é que está no inquérito, Duprat responde que é "o Protógenes, o mesmo da outra vez", referência ao delegado da PF, Protógenes Queiroz.
E, na mesma conversa, Duprat comenta que Dualib despediu o filho do Grondona (Julio Grondona, presidente da Associação de Futebol da Argentina e vice-presidente da Fifa), "que é o cara responsável pela fiscalização de lavagem de dinheiro na Fifa, o que causou mal-estar quando a PF foi à Fifa e mandaram falar exatamente com o Grondona, que até foi questionado por ser o responsável por essa área e o filho estar envolvido com o Corinthians". Duprat acha que Joorabchian pôs, "estrategicamente", o Grondoninha no clube.
Paralelamente a tudo isso, outra história se desenrolou - ou não se desenrolou -, a de Nilmar, tão enrolada como as demais, razão pela qual o leitor será poupado dela.
Porque melhor é a nova conversa mantida entre Dualib e Duprat, no dia 16 de outubro.
O cartola pergunta se "é para manter o discurso mentiroso sobre o Boris, que ele não tem nada a ver, que é tudo com o Badri?". Duprat ri e diz que "tem de falar a verdade, que o Boris nada tem a ver com a MSI".
Daí, o Flamengo aparece.
Joorabchian, no dia 31 de outubro, determina que Angioni fale com Verri para que este explique como será a entrada deles no clube carioca depois de ouvir que "o Flamengo quer abrir as portas para Kia".
""Só preciso de um mês para terminar tudo com o Corinthians e começar a investir no Flamengo". Novela curta, minissérie, porque logo acabou.
No dia anterior, ao receber nova cobrança de envio de dinheiro, Duprat diz a Dualib que "o problema é em Londres, porque eles não têm em nome de quem mandar".
Na verdade, não dá para acreditar numa só palavra dele.
Nem mesmo quando, aparentemente com sensatez, aconselha Dualib a não brigar com Curi, "pois não é hora". Só que Dualib está indignado ao telefone neste dia 23 de novembro, "porque ele não pode fazer o que está fazendo, chamando minha neta de ladra, porque tirei notas, de 14 anos para cá, para poder livrar a cara do Nesi da investigação e se não tivesse feito isso ele estaria enrolado juntamente com o Mello" (Carlos Roberto Mello, ex-vice-presidente de finanças do clube).
Novembro termina, dezembro começa, e tudo na mesma.
No dia 3, Duprat diz a Curi que contratou o centroavante Borges, no Japão. O jogador, de fato, veio do futebol japonês, mas para o São Paulo.
No dia 6, Curi diz a Duprat que todas as contratações estão sendo desmentidas na imprensa, e Duprat afiança que mandará muito dinheiro a partir do dia 15. "Primeiro, um dinheiro para cobrir o déficit; depois mais US$ 5 milhões e depois mais US$ 10 milhões." E começa a falar sobre a contratação de Cícero, meia do Figueirense.
Este acabou no Fluminense.
Um pouco depois, no mesmo dia, é Dualib quem cobra Duprat ao dizer que precisa de ao menos US$ 1 milhão. Duprat responde que será esse o valor e que o mandará "amanhã".
No dia 22, às 10h01, Duprat voa mais alto. A um interlocutor não-identificado, diz que "eles vão comprar mais quatro clubes no Brasil para lavar dinheiro" e diz "que o russo agora é o dono da Varig".
Berezovski, é verdade, quis, mas não comprou. Chegaremos nisso daqui a pouco.
Uma semana depois, Duprat fala a alguém não identificado que é contra o empréstimo do lateral Coelho para o Galo, "porque existe algum esquema entre o Kia, o Nesi e o Atlético".
Coelho, como sabem até as montanhas das Alterosas, é hoje jogador atleticano.
Mas Duprat não desiste, Duprat insiste, está em todas.
E em conversa com um dos vice-presidentes do Corinthians, Jorge Kalil, manifesta sua surpresa com o fato de a Unimed querer Carlos Alberto emprestado e pagando tudo, salário e direito de imagem. "Como é que um plano de saúde tira dinheiro do caixa para pagar empréstimo de jogador?", pergunta, provavelmente pela sua experiência com a falida Unicór, que fez papel semelhante no Santos e quebrou.
No mesmo diálogo, Duprat diz a Kalil que Carla, a neta do presidente, prefere ele, Kalil, como laranja do avô, a Edgard Soares, outro vice de Dualib.
O clima esquenta.
Curi diz a Duprat que "está arranjando uns guardas para bater em Martinez" (diretor de futsal do clube) e pergunta se Berezovski vem mesmo ao Brasil. Duprat diz que sim, "mas, se ele não vier, já tenho outro judeu", responde, e acrescenta que está tentando pegar Robinho emprestado.
Não é incrível que alguém pudesse acreditar?
Então, esquentam as negociações para Berezovski vir.
Dualib garante num diálogo com Curi que Duprat já acertou tudo com Brasília.
Nesi garante que "aquela mulher gorda estava atrapalhando", e Dualib a identifica como Clara Arnt, "da ala radical do PT e contra o Boris".
Ela, secretária pessoal de Lula, confirma: "Fui contra sim que o presidente o recebesse".
Curi acrescenta que o Lula teria gostado da visita deles, mas que é bom não comentar nada sobre o fato de terem ido falar sobre o Boris, para que ninguém mais trabalhe contra.
Sim, Dualib, Curi e Duprat estiveram com o presidente da República e pediram que ele se esforçasse para eliminar as barreiras que impediam a entrada do bilionário russo no Brasil.
Numa cena constrangedora, Curi até pediu que Lula ligasse na frente deles para Berezovski, sem ser atendido, segundo relata Gilberto Carvalho, chefe de gabinete da Presidência, ouvido sobre o episódio.
"A pedido da direção do Corinthians, nos limitamos a ver se era possível conseguir a extensão do asilo político dele na Inglaterra para o Brasil e não sabíamos sobre o russo o que sabemos hoje. Agora temos tratado de extradição com a Rússia, e é impensável tê-lo aqui. Além do mais, vi Duprat apenas na audiência com o presidente e jamais falei com ele sobre qualquer assunto depois disso", garante, embora confirme que houve gestões do jornalista Breno Altman, ligado ao ex-ministro José Dirceu e ao ministério da Justiça.
Altman chegou a viajar para a Europa para se encontrar com Berezovski e, quando da primeira vinda do russo ao Brasil, organizou reuniões para ele.
A justificativa é simples: o russo queria investir no Brasil em estádios, biodiesel, etanol etc e estava até disposto a passar parte do ano por aqui. Dono de uma fortuna avaliada em US$ 4 bilhões, Berezovski mobilizou vários segmentos, aí incluída a Assembléia Legislativa de São Paulo, por intermédio do deputado estadual petista, Vicente Cândido, um dos articuladores, segundo ele mesmo, sempre em nome de Dirceu, da frustrada vinda do bilionário.
Mas a Operação Perestroika traz de volta o mesmo nome de um velho personagem da corrupção no futebol brasileiro.
Em 1982 a revista "Placar" desvendou um esquema de manipulação de resultados dos jogos da Loteria Esportiva, no que ficou conhecido como a "Máfia da Loteria". Era um jornalista cearense de nome Flávio Moreira, que trabalhava na agência Sport Press, quem escolhia os 13 jogos da Loteca.
Descobriu-se que ele fazia a escolha de acordo com os grupos que manipulavam os resultados pelo país afora.
Pois é um tal Flávio Moreira quem procura Duprat, segundo o relatório da PF, para oferecer seus serviços para "classificar" o Corinthians no Campeonato Paulista, nega-se a falar mais pelo telefone e manda tirar suas referências com Paulo Pelaipe, diretor do Grêmio.
Duprat o dispensa, e a conversa não evolui ou não tem novos registros nas escutas da PF.
Uma fonte ouvida pela reportagem garante que Flávio Moreira é Flávio Moreira.
O fim desta novela, como quase todas, tem uma história de amor: Joorabchian passou pelo Brasil e levou para Londres a morena Tatiana, com quem se casou no dia da Pátria (a nossa...) em rica cerimônia.
E mais não se sabe desta novela porque, estranhamente, quando a PF avançava em suas investigações e se preparava para os capítulos finais da Operação Perestroika, eis que o Ministério Público Federal apresentou denúncia à Justiça, o que abortou novas abordagens.


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