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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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FUTEBOL

Dom Quixote e Sancho Pança

TOSTÃO
COLUNISTA DA FOLHA

Os leitores que detestam detalhes táticos não deveriam ler esta coluna. Como nada de novo acontece na maneira de jogar das equipes, terei de repetir antigos conceitos. Não me encanta escrever sobre isso, mas algumas poucas pessoas gostam, e sou metido a entender do assunto.
Numa equipe que joga com quatro defensores, há várias maneiras de se organizar o meio-campo e o ataque. A mais tradicional e comum, utilizada pela maioria das equipes da Europa, é a com dois volantes, um armador de cada lado e dois atacantes.
Nesse desenho, o armador de cada lado faz dupla com o lateral, na defesa e no ataque. Algumas equipes, em vez de armadores, jogam com pontas velozes e hábeis, que atacam e ajudam na marcação. Como os dois volantes avançam pouco, não há o meia de ligação com os dois atacantes.
Para não ter esse problema, alguns times, como o Real Madrid, recuam um dos atacantes. O Real joga com dois volantes, um armador de cada lado (Figo e Zidane) e o Raúl faz a ligação pelo meio. Só Ronaldo fica fixo na frente.
Anos atrás, o esquema mais utilizado no Brasil era o com dois volantes e dois meias ofensivos livres, próximos dos dois volantes. Essa postura está sendo progressivamente abandonada. Hoje, o esquema mais utilizado é o com três no meio-campo e um meia de ligação com os dois da frente. Assim joga o Cruzeiro. Na seleção, são três volantes, dois meias ofensivos e um atacante fixo.
Dos três volantes do Cruzeiro e da seleção, só o do meio fica mais atrás. Os outros dois (não sei se deveriam ser chamados de volantes) marcam e apóiam o ataque. Mas as duas equipes são tortas porque os volantes pela direita (Augusto Recife e Emerson) são muito mais marcadores do que apoiadores e os da esquerda (Wendel e Zé Roberto) são mais apoiadores do que marcadores.
A idéia inicial do Parreira era jogar com um volante mais avançado pela direita (Kleberson). Juninho Pernambucano e Renato são ótimas opções. Porém o técnico deve ter optado por Emerson para proteger os avanços dos laterais e pelo fato de o time ter dois zagueiros. O mesmo acontece no Cruzeiro de Luxemburgo.
O Goiás também joga com três volantes e três na frente. Mas, no lugar de um meia ofensivo e três atacantes, o time atua com dois pontas e um centroavante. Na verdade, os três não têm posição fixa, principalmente Araújo. Ele e Grafite ajudam na marcação. É o mesmo esquema do Corinthians, quando o time paulista era dirigido pelo técnico Parreira.
Uma característica do futebol brasileiro é o avanço dos laterais, às vezes ao mesmo tempo. Nesse caso, um dos volantes joga bastante recuado, quase como um terceiro zagueiro. Na Europa, as equipes nunca atuam com dois laterais apoiadores e dois zagueiros, já que não existe o volante-zagueiro. Por isso, o técnico do Milan raramente escala Cafu e Serginho numa mesma partida.
Os volantes da Europa atuam em linha e marcam na intermediária e no meio-campo. Não se posicionam entre os zagueiros, como é comum no Brasil. Não há o primeiro volante mais recuado e o segundo mais avançado.
Os times da Europa têm sempre três autênticos zagueiros ou dois e mais um lateral-zagueiro, que raramente passa do meio campo. A invenção dos técnicos brasileiros, de alternar o avanço dos laterais, é mais criativa e eficiente. Enquanto um ataca, o outro se posiciona mais atrás, para haver um zagueiro na cobertura.
As transformações táticas no futebol avançam lentamente e dão a impressão de que houve poucas variações nos últimos 40 anos. A única mudança brusca e revolucionária foi a da Holanda, em 1974. Onde estava a bola, havia dez holandeses. Era a pelada organizada. Foi um delicioso sonho que durou pouco tempo.
Talvez falte hoje no futebol um técnico revolucionário, sonhador e racional, mistura de Dom Quixote e Sancho Pança.
O desenho tático é apenas referência. Quando a bola rola, os jogadores não param de correr e trocam de posições -para desespero dos técnicos.
"O melhor momento do futebol, para um técnico, deve ser o minuto de silêncio. É quando os jogadores ficam parados, na sua posição designada no desenho da escalação. É no momento de silêncio que o jogador mais se parece com o botão, que o técnico usa na sua instrução. Por um breve instante materializa-se no campo a sua onipotência diagramada." (Luis Fernando Veríssimo)

E-mail: tostao.folha@uol.com.br


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