São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ GERALDO COUTO

Com que roupa


Entre a ousadia pedida pela filha e a austeridade exigida pela CBF, Dunga fica paralisado à beira do campo


NOS DIAS que se seguiram à derrota da seleção brasileira para Portugal, falou-se mais da camisa exibida (é bem esse o verbo) pelo técnico Dunga à beira do campo do que do futebol mostrado pela seleção dentro dele. A extravagância da camisa contrastou com a aridez do futebol. E Dunga se converteu numa esfinge a ser decifrada.
Afinal, o ex-capitão de 94 e 98 foi chamado pela CBF para comandar a seleção não pelos seus dotes de treinador -até então desconhecidos, pois nunca exercera a função-, mas por sua fama de xerife e guardião da macheza e da seriedade. A escolha do técnico do escrete geralmente responde ao estado de ânimo da torcida brasileira, de acordo com a avaliação que fazem dele nossos dirigentes. O Brasil fracassou na Copa da Alemanha. A chamada "opinião pública" julgou que falta de garra e excesso de estrelismo tinham sido as causas básicas do fracasso.
A resposta ideal a esse desejo de austeridade seria a volta de Luiz Felipe Scolari, nosso "analista de Bagé", segundo a feliz definição de Tostão. Mas Felipão, sabiamente, não topou. O jeito foi apelar para aquele que parecia ser uma espécie de discípulo seu, o valente, sóbrio, viril e também gaúcho Dunga.
Algumas das primeiras ações do novo comandante -barrar Ronaldinho, incensar o "pau para toda obra" Elano- corresponderam ao que se esperava dele nessa cruzada contra a "frescura". E o Brasil venceu os primeiros jogos, rendendo elogios a Dunga e à "nova mentalidade".
Mas, desde o início, havia uma coisa que destoava, que causava ligeiro desconforto, como uma fotografia impressa fora de registro, na qual as cores não correspondem ao contorno das figuras: as camisas de Dunga. A princípio timidamente, o novo técnico começou a ostentar modelitos que não se ajustavam ao estilo "faca na bota" do gaúcho da fronteira. Cedendo aos caprichos da filha, aprendiz de estilista, Dunga se tornou cada vez mais ousado, até culminar com a espantosa camisa da última terça. Antes de começar a partida, o treinador, ainda hesitante, escondeu um pouco a novidade sob um incongruente agasalho da CBF.
Depois criou coragem e, apesar do frio que beirava 0C, tirou a jaqueta, deixando resplandecer a camisa em toda a sua feérica feiúra. A imagem é inesquecível. Os jogadores corriam em campo usando luvas, gorros e echarpes, enquanto Dunga, impassível e fleugmático como uma estátua, usava só uma camisa sobre a pele. Emitia assim mensagem paradoxal, como se tentasse satisfazer ao mesmo tempo a demanda de ousadia "fashion" que vinha da filha e a demanda de austeridade varonil que vinha dos torcedores. Era como se Dunga estivesse dizendo: "Uso essas roupas enfrescalhadas, mas não sou boiola, não. Tem que ser macho para suportar esse frio cão em mangas de camisa".
Não sei se o que paralisou Dunga foi a dificuldade de conjugar todas essas injunções contraditórias ou se foi simplesmente o frio, mas o fato é que, enquanto Felipão gritava e gesticulava com seus comandados no velho estilo de sempre, o nosso técnico seguia imóvel à frente do banco, assistindo passivamente à derrota. Sei que dirão que o traje é um elemento secundário, que camisa não ganha jogo nem dentro de campo, muito menos fora. Concordo. Mas, neste nosso mundo de aparências, a roupa pode ser um signo eloqüente, falando muito sobre quem a veste e sobre o ambiente ao seu redor.
Dunga atravessa um momento crucial. A lua-de-mel com a torcida está acabando, o rancor contra os astros fracassados de 2006 parece diminuir e estão para começar as batalhas da Copa América e das eliminatórias. A CBF lhe pede austeridade, a filha lhe pede audácia. Estou curioso para saber com que camisa ele aparecerá no próximo jogo da seleção.

jgcouto@uol.com.br


Texto Anterior: Judô: De olho no Pan, brasileiros lutam hoje em Paris
Próximo Texto: Assédio sexual decola no esporte e obriga COI a agir
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.