São Paulo, sábado, 10 de maio de 2008

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JOSÉ GERALDO COUTO

O inferno é o outro

Em uma noite de festa, o Flamengo só se deu conta de que tinha um adversário quando já perdia de 2 a 0

AO VER o Flamengo entrar no Maracanã com festa, placa, dirigente e homenagem, enquanto os jogadores do América se aqueciam, quietinhos, num canto do gramado, juro que pensei: "Já vi esse filme". A frase que me veio à mente, freqüentemente atribuída a Garrincha, foi: "Esqueceram de combinar com o adversário".
Não deu outra.
Os craques Ochoa e Cabañas, coadjuvados por um punhado de bravos companheiros, não só aguaram a festa rubro-negra como impuseram ao time da casa um dos maiores vexames dos últimos tempos.
Foi um desastre anunciado, a atualização de traumas ocorridos, por exemplo, em 1950, 1982 e 1998 com a seleção brasileira.
Em todos esses casos, o time entrou em campo já se julgando vitorioso e tomou um susto ao topar com um adversário que não estava disposto a ser apenas coadjuvante da comemoração.
A passagem da onipotência à impotência é mais curta e rápida do que imaginamos. É como se a existência do adversário fosse uma surpresa repentina que nos imobiliza.
Quarta-feira, no Maracanã, a torcida rubro-negra cantava, feliz da vida, os jogadores em campo criavam lances de efeito e raramente chegavam à área do América, parando sempre nas mãos de Ochoa. Enquanto isso, os mexicanos faziam gols. Fizeram um, dois e pensaram: "Sí, se puede".
A conversa no vestiário flamenguista deve ter sido bem diferente da mística euforia pré-jogo, que a Globo exibiu no intervalo "com exclusividade". Àquela altura os jogadores rubro-negros já estavam assustados: "Gente, tem uns caras de amarelo no nosso pedaço. Não nos deixam fazer gol e ainda fazem gol em nós."
Vários observadores já notaram esse comportamento ciclotímico do brasileiro, capaz de saltar sem transição do complexo de vira-lata ao sentimento de invencibilidade, e vice-versa. Ou somos os melhores do mundo ou a escória da humanidade.
Não há meio-termo. A mesma torcida que ovacionou o técnico Joel Santana passou a hostilizá-lo depois do terceiro gol mexicano. A mão que afaga é a mesma que apedreja, já dizia Augusto dos Anjos.
A festa e a ressaca da noite de quarta-feira no Maracanã foram, de certo modo, uma atualização ritual de mitos antigos.
Um aspecto não negligenciável do acontecimento foi a ruidosa comemoração dos torcedores não flamenguistas, e não apenas no Rio.
Em toda parte ouviram-se fogos e cantoria. O cineasta botafoguense Sylvio Back relata que no bairro onde mora, Ipanema, as pessoas saíam às ruas ou apareciam às janelas gritando "Chora, Mengo". O escritor Sérgio Sant'anna, torcedor do Fluminense, mandou por e-mail a amigos o vídeo da preleção pré-jogo de Joel Santana a seus comandados, tornada patética depois da derrota.
Mais do que o clássico "ejacular com o membro alheio", essas reações mostram que um jogo desse tipo mobiliza emoções profundas e revolve motivos recorrentes do nosso imaginário pessoal e coletivo. Tudo indica que o Corinthians, que hoje começa sua saga na Série B, vai concentrar boa parte dos desejos, projeções e emoções dos brasileiros ao longo deste ano.


jgcouto@uol.com.br

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