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JOSÉ GERALDO COUTO
O inferno é o outro
Em uma noite de festa, o Flamengo só se deu conta
de que tinha um adversário quando já perdia de 2 a 0
AO VER o Flamengo entrar no
Maracanã com festa, placa,
dirigente e homenagem, enquanto os jogadores do América se
aqueciam, quietinhos, num canto do
gramado, juro que pensei: "Já vi esse
filme". A frase que me veio à mente,
freqüentemente atribuída a Garrincha, foi: "Esqueceram de combinar
com o adversário".
Não deu outra.
Os craques Ochoa e Cabañas,
coadjuvados por um punhado de
bravos companheiros, não só aguaram a festa rubro-negra como impuseram ao time da casa um dos maiores vexames dos últimos tempos.
Foi um desastre anunciado, a
atualização de traumas ocorridos,
por exemplo, em 1950, 1982 e 1998
com a seleção brasileira.
Em todos esses casos, o time entrou em campo já se julgando vitorioso e tomou um susto ao topar
com um adversário que não estava
disposto a ser apenas coadjuvante
da comemoração.
A passagem da onipotência à impotência é mais curta e rápida do
que imaginamos. É como se a existência do adversário fosse uma surpresa repentina que nos imobiliza.
Quarta-feira, no Maracanã, a torcida rubro-negra cantava, feliz da vida, os jogadores em campo criavam
lances de efeito e raramente chegavam à área do América, parando
sempre nas mãos de Ochoa. Enquanto isso, os mexicanos faziam
gols. Fizeram um, dois e pensaram:
"Sí, se puede".
A conversa no vestiário flamenguista deve ter sido bem diferente da
mística euforia pré-jogo, que a Globo exibiu no intervalo "com exclusividade". Àquela altura os jogadores
rubro-negros já estavam assustados:
"Gente, tem uns caras de amarelo no
nosso pedaço. Não nos deixam fazer
gol e ainda fazem gol em nós."
Vários observadores já notaram
esse comportamento ciclotímico do
brasileiro, capaz de saltar sem transição do complexo de vira-lata ao
sentimento de invencibilidade, e vice-versa. Ou somos os melhores do
mundo ou a escória da humanidade.
Não há meio-termo. A mesma torcida que ovacionou o técnico Joel
Santana passou a hostilizá-lo depois
do terceiro gol mexicano. A mão que
afaga é a mesma que apedreja, já dizia Augusto dos Anjos.
A festa e a ressaca da noite de
quarta-feira no Maracanã foram, de
certo modo, uma atualização ritual
de mitos antigos.
Um aspecto não negligenciável do
acontecimento foi a ruidosa comemoração dos torcedores não flamenguistas, e não apenas no Rio.
Em toda parte ouviram-se fogos e
cantoria. O cineasta botafoguense
Sylvio Back relata que no bairro onde mora, Ipanema, as pessoas saíam
às ruas ou apareciam às janelas gritando "Chora, Mengo". O escritor
Sérgio Sant'anna, torcedor do Fluminense, mandou por e-mail a amigos o vídeo da preleção pré-jogo de
Joel Santana a seus comandados,
tornada patética depois da derrota.
Mais do que o clássico "ejacular
com o membro alheio", essas reações mostram que um jogo desse tipo mobiliza emoções profundas e
revolve motivos recorrentes do nosso imaginário pessoal e coletivo.
Tudo indica que o Corinthians,
que hoje começa sua saga na Série B,
vai concentrar boa parte dos desejos, projeções e emoções dos brasileiros ao longo deste ano.
jgcouto@uol.com.br
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