São Paulo, sexta-feira, 10 de agosto de 2007

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XICO SÁ

Vai, filho, ser zagueiro na vida

A sorte nossa é que sempre aparece um abusado que vem lá da mais erma das várzeas, caso contrário...

AMIGO TORCEDOR , amigo secador, as velhas convicções estão indo para o Cajamar da existência, digo, para a cratera moral dos clichês, para o cemitério das frases feitas, para o buraco do metrô, linha Pinheiros. Foi-se o tempo do "quem não faz leva", foi-se o tempo da "melhor defesa é o ataque", está tudo de cabeça para baixo, errata urgente, cesse tudo que a musa ludopédica antiga canta.
Está aí o São Paulo para mostrar, com Muricy Ramalho no papel de um aplicadíssimo Conselheiro Acácio, que a melhor defesa é uma boa defesa mesmo. Garçom, passa a régua dos pontos corridos e traz a conta. Estão certos os tricolores que já começaram a comemorar o título, certíssimos, este é de vocês e ninguém tira, diz aqui o corvo Edgar, o mais fatalista dos botafoguenses.
Sim, a moral da guerra é essa: um golzinho perdido todo mundo acha, até o lanterna quando apanha de cinco, pois o gol de honra é um direito de nascença, está escrito nas tábuas de Hamurabi, de Moisés e até de Lazaroni nos seus piores momentos. É igual àquele mesmo direito inalienável dos homens feios: pelo menos uma vez na vida irão à cama com uma deusa. Então, recapitulando, basta não tomar nenhum e ganhar com aquele golzinho que até o Íbis tem direito.
Para completar, o tricolor paulista tem três zagueiros que jogam o fino, e não deixa de ser interessante que o país dos atacantes e dos meias que entravam com bola e tudo passe a ser a pátria dos beques de luxo.
No meu tempo de dente-de-leite era difícil achar um garoto disposto a atuar na zaga. Todo mundo queria ser do camisa 8 para a frente. Era raro um zagueiro que sabia cortar e sair jogando com classe, sobrava um ou outro Mozer ou Leandro do melhor Flamengo de todos os tempos. Ainda não temos tantos, mas estamos a caminho da fartura, não há quem duvide de que vivemos o primeiro Brasileirão cujas defesas são as vanguardas absolutas, as cozinhas viraram as salas de visitas, o esquema com três beques deixou de ser uma covardia e passou a ser a regra do novo catecismo.
O moleque da escolinha ou do bairro já não tem vergonha de dizer: "Pai, eu quero ser zagueiro". Era vergonhoso defender com classe, zagueiro nato era aquele cara que não sabia trocar uma idéia com a maricota, espezinhava a musa esférica como um raivoso sadomasoquista que bate na escrava. Não é à toa que o Vitória, no lado B do Brasileiro, cria o treinador de zagueiros.
Na falta de Robinhos, o defensivismo tende mesmo a se consolidar na pátria que inventou o mais refinado jazz ludopédico do mundo. É, amigo, tempos recuados, guardados, sintoma do 0 a 0 que toma conta do mundo em todas as áreas. A sorte nossa é que sempre aparece um maluco, um abusado que vem lá da mais erma das várzeas, e na primeira reinvenção da pedalada põe o mais virtuoso zagueiro a andar para trás como um caranguejo.
Não queria um filho meu, velho Brás Cubas, nessa situação, sempre na defesa, lutando por um meio a zero, só para garantir as batatas mínimas da existência. Talvez por isso me recuse inconscientemente a deixar o legado da nossa miséria. Feliz Dia dos Pais, principalmente aos pais dos zagueiros e goleiros!

xico.folha@uol.com.br


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