São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2006

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Arqueólogos da bola resgatam o futebol incógnito

Grupo percorre o Brasil em busca de equipes que vivem distante dos holofotes; relatos revelam folclore e descaso

"Jogos Perdidos", nome do projeto, leva clubes para a internet e alerta para problemas de estrutura no país pentacampeão

GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL

Orlando Lacanna notou algo estranho no gramado. O vendedor que o atendera minutos antes, quando havia comprado um saco de pipoca, envergava agora a camisa 11 do Jacareí.
Intrigado, abordou o rapaz no final do jogo -um duelo oficial, contra o Paulistano de Jundiaí, válido pela 3ª divisão do Estadual -, em busca de explicações. "Descobri que a equipe não tinha 11 atletas no elenco. Para evitar uma derrota por W.O., convocaram o pipoqueiro. Ele aceitou na hora."
O episódio é um dos preferidos, mas não o único que Lacanna guardou das andanças que começaram em 1967. Seu objetivo era buscar partidas esquecidas, acompanhar times de divisões inferiores que não recebiam a atenção da mídia.
Só não esperava encontrar tantos excêntricos que compartilhavam a mesma paixão.
Hoje, quase 40 anos após iniciar suas peregrinações, Lacanna é o patriarca de um grupo que vasculha os subterrâneos do futebol, resgata equipes que desapareceram dos holofotes e relata o cotidiano de jogadores que vivem bem longe do glamour das divisões de elite.
"Jogos Perdidos" é o nome do projeto e do site que o grupo criou para divulgar o trabalho. Na internet desde 2004, recebe em média 500 visitantes por dia. "Somos os responsáveis pela primeira aparição de diversas equipes, atletas e até juízes em um meio de comunicação. São clubes e pessoas tão marginalizadas que muitos nem acreditam que estão sendo seguidos e fotografados", explica o engenheiro Jurandyr Júnior.
As fotos, aliás, são um diferencial. Para resgatar um tempo que batizam de "romântico" da crônica esportiva, os integrantes publicam imagens de todos os times posados, bem como dos capitães ao lado do trio de arbitragem. "É igualzinho aos jornais das décadas de 60 e 70. Hoje, você só vê uma fotografia do seu time assim, metade em pé, metade agachado, quando ele consegue ganhar um título. E os que a gente vê estão bem longe de atingir tal feito", descreve Júnior.
Ninguém ali é profissional. A trupe dos "Jogos Perdidos" concilia a rotina dos trabalhos (há de taxistas a administradores de empresas) com viagens de carro, ônibus ou avião em busca de confrontos exóticos. Às vezes, correm riscos.
"Certa vez, fui assistir ao XV de Campo Bom, no Rio Grande do Sul. O pessoal lá não estava habituado a receber desconhecidos. Acharam que eu era empresário, que estava ali para roubar jogadores. Quase apanhei", rememora Júnior.
Os mais devotos chegam a acompanhar cerca de 220 jogos por ano -média de quatro por semana. A única regra é seguir apenas duelos oficiais, organizados por federações estaduais ou pelos dirigentes da CBF.
Mesmo assim, muitas partidas não saem do papel. Emerson Ortunho, por exemplo, rumou nesta temporada para o Rio. Queria acompanhar Ceries x Esprof, válido pela segunda divisão do Estadual sub-20.
O time visitante veio de Arraial do Cabo. Cumpriu 160 km de viagem. Quem faltou, contudo, foi o elenco da casa. "Procuramos o presidente para explicar o caso. Ele disse que simplesmente se esqueceu da partida. Quando lembrou, já era tarde para buscar o elenco. Então, desistiu", afirma Ortunho.
O repertório de causos inusitados não pára por aí. Existem relatos de ataques de marimbondos que inviabilizaram jogos e até a participação de um membro dos "Jogos Perdidos" em partida da terceira divisão de São Paulo -acabou escalado pelo árbitro para substituir um bandeirinha contundido.
Além de rechear o anedotário da bola, os integrantes querem chamar a atenção para a realidade de clubes que já foram celeiros de talentos e hoje vivem tempos bicudos.
"Até uns 10, 20 anos atrás, times pequenos tinham muito mais identificação com as cidades, com os bairros. Eram queridos, tinham torcidas. Mas os Estaduais perderam força, e a maioria virou uma simples vitrine para empresários exibirem suas peças", diz Lacanna.
Assim, além de produzir os relatos disponíveis no site (http://jogosperdidos.zip.net), o grupo começou a compilar as melhores histórias em um livro e estuda a criação de um programa de rádio que será vinculado na internet.
O objetivo, de acordo com Lacanna, é evitar que o descaso risque times e torneios do mapa. "Já acompanhei partidas nas quais havia só o nosso pessoal no estádio. Nem as famílias dos jogadores apareceram."


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