São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2007

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JOSÉ GERALDO COUTO

O hábito de sofrer

À beira do abismo, o torcedor corintiano põe à prova a mística do sofrimento como condição da paixão

"E O HÁBITO de sofrer, que tanto me diverte (...)", diz Drummond em sua "Confidência do Itabirano". Sempre associei esse verso ao sentimento do torcedor corintiano, orgulhoso de seu padecimento.
Da marchinha carnavalesca "Coração Corintiano" ao hino dos Gaviões da Fiel ("Sou corintiano, maloqueiro e sofredor, graças a Deus"), o sofrimento é sempre exaltado como um traço constitutivo do corintianismo.
Mas talvez os corintianos sejam apenas o exemplo mais exacerbado de uma condição comum ao aficionado do futebol.
No Rio, essa condição fica mais evidente, a meu ver, no torcedor do Botafogo, aquele que parece a hiena Hardy do desenho, a repetir: "Eu disse que não ia dar certo".
Não vamos ao estádio meramente para nos divertir. Vamos também, e talvez principalmente, para sofrer.
Estamos tão habituados com isso que nem percebemos. Quem me chamou a atenção para esse estranho fato foi o escritor inglês Nick Hornby, que em seu livro "Febre de Bola" relata sua primeira ida ao estádio do Arsenal, aos 11 anos, acompanhado do pai.
O pequeno Nick ficou encantado com o número de torcedores, com os palavrões gritados a plenos pulmões etc. Mas o que mais o impressionou foi "o quanto a maioria dos homens à minha volta detestava, realmente detestava estar ali".
Diz ele mais adiante: "Poucos minutos após o pontapé inicial já surgira uma raiva verdadeira ("Você é uma vergonha, Gould!" "Cem paus por semana? Deviam me dar isso só para te ver jogar'); durante o desenrolar do jogo a raiva foi se transformando num sentimento de revolta, e depois pareceu azedar e virar um descontentamento silencioso e ressentido".
Depois de ver partidas não só do Arsenal, mas também do Chelsea, do Tottenham e do Rangers, Hornby conclui: "O estado natural do torcedor de futebol é a decepção, pouco importa qual seja o placar".
Entre as obscuras razões que nos levam a torcer para um time em vez dos outros talvez esteja a eleição daquele que mais corresponde a nossos sentimentos e pulsões mais profundos, ainda que não inteiramente conhecidos.
O fato de uma legião imensa de brasileiros, em especial de paulistanos, escolher o Corinthians indica, quem sabe, uma tendência dessa gente toda a encarar a paixão como algo inseparável da dor, a alegria como algo que necessita também das derrotas e decepções para se afirmar mais plenamente no final.
Daí também a mística da "virada", do gol redentor no último minuto, uma espécie de reprodução no campo de jogo das narrativas melodramáticas com final feliz. Há muito de religioso nisso, de moral cristã da purificação pela via do sofrimento e do sacrifício.
Não são poucos os corintianos que agora, por exemplo, já consideram que é melhor mesmo o time cair para a Série B e depois retornar das cinzas regenerado.
Por tudo isso, o jogo crucial de amanhã contra o Goiás poderá trazer ao corintiano uma alegria imediata, superficial, ou um pesar profundo e, paradoxalmente, prazeroso.


jgcouto@uol.com.br

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