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JOSÉ GERALDO COUTO
O hábito de sofrer
À beira do abismo, o torcedor corintiano põe à prova
a mística do sofrimento
como condição da paixão
"E O HÁBITO de sofrer, que
tanto me diverte (...)", diz
Drummond em sua
"Confidência do Itabirano". Sempre
associei esse verso ao sentimento do
torcedor corintiano, orgulhoso de
seu padecimento.
Da marchinha carnavalesca "Coração Corintiano" ao hino dos Gaviões da Fiel ("Sou corintiano, maloqueiro e sofredor, graças a Deus"), o
sofrimento é sempre exaltado como
um traço constitutivo do corintianismo.
Mas talvez os corintianos sejam
apenas o exemplo mais exacerbado
de uma condição comum ao aficionado do futebol.
No Rio, essa condição fica mais
evidente, a meu ver, no torcedor do
Botafogo, aquele que parece a hiena
Hardy do desenho, a repetir: "Eu
disse que não ia dar certo".
Não vamos ao estádio meramente
para nos divertir. Vamos também, e
talvez principalmente, para sofrer.
Estamos tão habituados com isso
que nem percebemos. Quem me
chamou a atenção para esse estranho fato foi o escritor inglês Nick
Hornby, que em seu livro "Febre de
Bola" relata sua primeira ida ao estádio do Arsenal, aos 11 anos, acompanhado do pai.
O pequeno Nick ficou encantado
com o número de torcedores, com
os palavrões gritados a plenos pulmões etc. Mas o que mais o impressionou foi "o quanto a maioria dos
homens à minha volta detestava,
realmente detestava estar ali".
Diz ele mais adiante: "Poucos minutos após o pontapé inicial já surgira uma raiva verdadeira ("Você é
uma vergonha, Gould!" "Cem paus
por semana? Deviam me dar isso só
para te ver jogar'); durante o desenrolar do jogo a raiva foi se transformando num sentimento de revolta,
e depois pareceu azedar e virar um
descontentamento silencioso e ressentido".
Depois de ver partidas não só do
Arsenal, mas também do Chelsea,
do Tottenham e do Rangers,
Hornby conclui: "O estado natural
do torcedor de futebol é a decepção,
pouco importa qual seja o placar".
Entre as obscuras razões que nos
levam a torcer para um time em vez
dos outros talvez esteja a eleição daquele que mais corresponde a nossos sentimentos e pulsões mais profundos, ainda que não inteiramente
conhecidos.
O fato de uma legião imensa de
brasileiros, em especial de paulistanos, escolher o Corinthians indica,
quem sabe, uma tendência dessa
gente toda a encarar a paixão como
algo inseparável da dor, a alegria como algo que necessita também das
derrotas e decepções para se afirmar
mais plenamente no final.
Daí também a mística da "virada",
do gol redentor no último minuto,
uma espécie de reprodução no campo de jogo das narrativas melodramáticas com final feliz.
Há muito de religioso nisso, de
moral cristã da purificação pela via
do sofrimento e do sacrifício.
Não são poucos os corintianos que
agora, por exemplo, já consideram
que é melhor mesmo o time cair para a Série B e depois retornar das
cinzas regenerado.
Por tudo isso, o jogo crucial de
amanhã contra o Goiás poderá trazer ao corintiano uma alegria imediata, superficial, ou um pesar profundo e, paradoxalmente, prazeroso.
jgcouto@uol.com.br
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