São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2008

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JOSÉ GERALDO COUTO

Crepúsculo dos xerifes


Onde o cronista, insistente defensor do futebol-arte, se rende ao valor de Chicão e outros "deuses da raça"

NO FUTEBOL, como todos sabem, "xerife" é o jogador que toma conta do setor defensivo, usando métodos que nem sempre respeitam a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
É como se a "zona do agrião", assim como o bravio oeste americano de John Wayne, obedecesse a regras de convivência humana um tanto mais rudes do que as usuais no mundo democrático.
Quis o destino que morressem prematuramente, com menos de dois meses de intervalo entre um e outro, dois dignos representantes da estirpe, Moisés e Chicão.
O primeiro, morto em 26 de agosto, defendeu com unhas, dentes e travas as áreas do Vasco, do Corinthians e até do Paris Saint-Germain.
Já Chicão atuou sobretudo no São Paulo e no Atlético Mineiro, além da seleção brasileira, pela qual disputou a Copa de 1978, na Argentina.
Foram contemporâneos, enfrentaram-se várias vezes e morreram quase com a mesma idade: Moisés com 60 anos, Chicão com 59. Deixaram saudade entre os torcedores de seus clubes e algum rancor entre os adversários.
Moisés era beque de corpo, alma e vocação. É dele a célebre frase: "Zagueiro que se preza não pode ganhar o Belfort Duarte", em referência ao prêmio concedido ao atleta que passasse dez anos sem ser expulso.
Poderia ter escrito também o verso de Jorge Benjor: "Zagueiro não pode ser muito sentimental".
Os que conviveram com ele fora do campo, porém, dizem que era um sujeito afável e alegre como poucos.
Essa aparente dicotomia não é rara no futebol. Assim como no desenho animado em que o Pateta é um cidadão pacato que vira um monstro sádico ao volante de seu carro, alguns atletas vivem estranha metamorfose ao calçar suas chuteiras.
Chicão, que morreu na última quarta-feira, também foi um doce de pessoa, a julgar pelo testemunho de seus amigos e colegas.
Quebrou algumas pernas adversárias ao longo da carreira, é verdade, mas no ofício de um velho xerife essas coisas são consideradas pouco mais que acidentes de trabalho. Claro que a opinião dos que tiveram seus ossos fraturados deve ser um tanto diferente.
Tentando deixar em suspenso o juízo moral, o fato é que Chicão e Moisés representavam um tipo de jogador considerado necessário ao equilíbrio e à vibração das equipes.
Eram os brutos que limpavam o terreno para que brilhassem os Rivellinos, os Pedros Rochas, os Zicos. Mesmo para os treinadores mais racionais, sua importância era enorme. Claudio Coutinho, por exemplo, barrou o muito mais sofisticado Falcão, então no auge, e convocou Chicão para a dura guerra da Copa-78. Para suas torcidas, eram os "deuses da raça". Há poucos como eles hoje em dia. Não que não existam jogadores truculentos. O que rareia é a sintonia entre a virilidade em campo e a vibração da torcida, entre a violência e a paixão.
Talvez seja ingenuidade dizer que havia mais amor à camisa do que maldade nas sapatadas de Moisés, Chicão e cia. Talvez seja apenas a luz difusa do crepúsculo que provoca essa ilusão, assim como conferia uma aura heróica às crueldades de John Wayne contra os índios e mexicanos dos filmes de Hollywood.

jgcouto@uol.com.br



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