São Paulo, Quinta-feira, 11 de Novembro de 1999
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Um futebol fora-da-lei

Montagem sobre foto da Sportpress
O presidente da Comissão Disciplinar da CBF, Paulo Rodrigues (centro), durante o julgamento dos pontos do jogo São Paulo X Inter



Justiça esportiva torce e retorce legislação e tumultua o Brasileiro a tal ponto que ameaçou a segunda fase, originalmente marcada para começar no fim-de-semana


MARCELO DAMATO
da Reportagem Local

Terminou ontem a primeira fase do Campeonato Brasileiro, que expôs que a Justiça esportiva não age igualmente para todos.
A segunda fase, que começa neste fim-de-semana, já tem seu calendário ameaçado exatamente pelas confusões dos tribunais.
Mais do que em qualquer ano anterior, ficou claro que a cúpula do futebol brasileiro cria a cada caso interpretações tão elásticas da legislação esportiva que fica claro que ela pouco importa.
Os executores dessas manipulações são os poderes do esporte: Confederação Brasileira de Futebol (executivo) e Tribunal de Justiça Desportiva (judiciário).
Os beneficiados são os times grandes, especialmente os do Rio. Os prejudicados, os de outros Estados, inclusive alguns de tradição, como São Paulo e, em menor grau, o Corinthians.
Desta vez a reação é maior por dois motivos. Primeiro, um dos maiores prejudicados é um clube desacostumado a ser tratado dessa maneira, o São Paulo.
Mas esse motivo sozinho não seria suficiente. Afinal, o antigo STJD, antecessor do Tribunal de Justiça Desportiva, em 1994 e 1997 desrespeitou a lei esportiva para garantir duas vezes a escalação de Edmundo em finais do Brasileiro.
Na primeira, ele pôde defender o Palmeiras contra o Corinthians. Na segunda, o Palmeiras foi prejudicado diante do Vasco. Em ambas, Edmundo foi campeão.
O segundo motivo é que neste ano os dirigentes da CBF e os auditores do TJD se superaram.
Anteontem, a Comissão Disciplinar, ao determinar que o Inter ficasse com dois (e não três) pontos do jogo com o São Paulo, produziu um resultado impossível.
Com essa votação, o clube gaúcho não poderia ser declarado vencedor da partida por 1 a 0, tal como foi o Botafogo-RJ, porque não existe vitória de dois pontos. Também não podia ser confirmado o empate (2 a 2, em 10 de outubro), porque, nesse caso, o São Paulo, não perderia seu ponto.
Ontem, diante da inusitada situação, em que nem os clubes, nem a CBF, nem o próprio tribunal sabia dizer qual era afinal o resultado do jogo, a comissão se reuniu e deu mais um ponto ao Internacional e a vitória por 1 a 0.
Mas o Inter só foi ao tribunal porque o Botafogo-RJ havia conseguido os pontos contra o mesmo adversário. O motivo foi o registro supostamente irregular do atacante Sandro Hiroshi.
Um dos motivos de maior polêmica na disputa jurídica entre os dois clubes é que a CBF forneceu a cada litigante um documento com conclusões diferentes sobre a situação de Hiroshi. O que o São Paulo recebeu atestava a regularidade da situação do jogar. O do Botafogo-RJ dizia o contrário.
Por um motivo que permanece desconhecido, o tribunal aceitou apenas o Botafogo, cuja existência até o São Paulo ignorava.
E essa disputa só aconteceu porque dois anos atrás, a mesma CBF adulterou o Código Brasileiro Disciplinar do Futebol, uma portaria do então Ministério da Educação e Cultura, com uma resolução da diretoria. Os autores do CBDF, para desestimular a ida aos tribunais, estabeleceram que o clube que usasse um jogador irregular perderia cinco pontos, mas o resultado do jogo seria mantido.
Em 1997, exorbitando dos seus poderes, a CBF mudou o artigo 301, alterou a redação, de tal modo que, num caso assim, o time infrator passaria a ser perdedor da partida pelo resultado de 1 a 0.
Os clubes, confirmando sua tradição de quase nunca agirem em defesa de princípios ou da lei, mas apenas de seus próprios interesses, calaram-se, e a mudança, embora ilegal, passou a ser aplicada.
Já no Brasileiro-98, choveram ações por causa dessa abertura. Mas, de novo, ninguém contestou a legalidade da RDI.
Quando, neste ano, o caminho do tribunal passou a pôr em risco até a conclusão do Brasileiro, o presidente da CBF, Ricardo Teixeira, anunciou que em 2000 todas as RDIs serão anuladas.
O Botafogo-RJ não é o único clube do Rio ajudado por decisões do TJD da CBF. Talvez nem seja o maior beneficiado.
Em abril, o presidente do tribunal, Sérgio Zveiter, mandou a CBF registrar a transferência do meia Paulo Miranda, apesar de o clube cedente não ter autorizado a transferência. Em dezembro, o Vasco havia acertado a compra do jogador, cuja transferência havia sido condicionado.
O Vasco não pagou, mas conseguiu o registro, mesmo assim. Nem o diretor jurídico ca CBF, Carlos Eugenio Lopes, que anunciou publicamente a existência de 40 jogadores com passe bloqueado atuando, quis registrar isso.
Então o Vasco recorreu ao presidente do TJD, Sérgio Zveiter, que mandou fazer o registro.
A operação foi classificada por Lopes num documento provado como uma ""flagrante violação da lei" realizada por Zveiter.
Quando neste Brasileiro, Miranda invadiu o campo de São Januário para dar um pito no juiz Paulo César de Oliveira, que havia expulsado três vascaínos no jogo contra o Paraná, a força política carioca se manifestou outra vez.
Embora fosse o vice-presidente de futebol do clube que invadira o campo, a Comissão Disciplinar ao julgar afirmou que o clube não tinha responsabilidade pela suspensão do jogo e decretou o empate de um jogo encerrado seis minutos antes do fim -o Vasco tinha três atletas a menos e estava completamente descontrolado.
Se, como manda o CBDF, o Paraná tivesse sido declarado vencedor, estaria hoje com dois pontos a mais e, talvez, com chance de escapar do rebaixamento.
O Vasco foi punido com a perda do mando de um campo -e cumpriu a pena no Maracanã. Porque um torcedor do Corinthians invadiu o Pacaembu no jogo contra o Vasco, o time recebeu o dobro da pena e ainda teve que jogar fora no Maracanã.
O maior punido, ironicamente, foi Paulo César de Oliveira, não por esse jogo, em que nada fez de anormal, mas por outro, em que foi condenado por não ter relatado uma invasão de campo.
Esse não é o único caso. O meia Rincón foi suspenso por três jogos por ter acertado num atleta do Flamengo, num lance não visto pelo juiz. Já o vascaíno Edmundo abriu o supercílio de outro flamenguista e chutou deslealmente um jogador do Atlético-PR e não pegou nem um jogo de gancho.
Segundo alguns advogados, as irregularidades do TJD es estendem até sua composição. Por ser um tribunal nacional, os representantes da Ordem dos Advogados do Brasil deveriam ser indicados pela entidade nacional e não pela seção carioca, onde Zveiter foi há pouco tempo presidente.
Por fim, como toda essa sucessão de pequenos golpes poderia dar errado caso o Gama vencesse ontem, vários clubes grandes preparam a cartada definitiva, a ""virada de mesa" no rebaixamento.
Miranda já defende abertamente mudança na redação aprovada há mais de um ano pelos clubes.
O presidente do Clube 13, Fábio Koff, numa tentativa de descaracterizar a operação como uma mudança no regulamento, fala em reinterpretação.
Esses argumentos não comovem todos os sócios do Clube dos 13. Os presidentes do Grêmio, José Alberto Guerreiro, e o do Cruzeiro, José Perrela de Oliveira Costa, se colocam contra. Dizem que estiveram perto de cair e nunca pediram ajuda a ninguém.
Dizem, enfim, que o futebol precisa de credibilidade.
Cedendo às pressões de Miranda, Koff e Carlos Augusto Montenegro, vice de futebol do Botafogo-RJ, Teixeira aceitou convocar para hoje uma reunião do Conselho Arbitral para rediscutir o rebaixamento -na madrugada de hoje, o vice-presidente da CBF, Alfredo Nunes, daria entrevista coletiva para falar sobre a situação do campeonato.
Assim, caso tivesse conseguido ontem no campo o direito de ficar na Série A, o Gama poderia ser espoliado hoje.
Os desmandos não ocorrem só na Série A. Na Série B, o São Caetano, o melhor time da primeira fase, teve sete jogadores suspensos por 30 dias porque invadiram o campo para protestar contra um pênalti marcado a favor do Bahia, há duas semanas. Nem em brigas campais entre jogadores, como a de Atlético-MG x Vitória, houve punição semelhante.
O objetivo, velado, é claro: pôr mais dois sócios do Clubes dos 13, Bahia e Goiás, na Série A de 2000.
Se vai haver rompimento com a (des)ordem estabelecida, isso vai depender dos clubes que se sintam prejudicados.
Mas, de novo, há sinais de que esses clubes podem desistir mais uma vez do confronto. Alegando falta de um documento, o São Paulo adiou para hoje a entrada na Justiça comum. Se a decisão está ligada ao resultado de ontem, só hoje se saberá.


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