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São Paulo, terça-feira, 13 de maio de 2003

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FUTEBOL

Técnico muda hábitos para não se sentir estrangeiro em Portugal e usa "sangue quente" brasileiro para vencer além-mar

Scolari veste terno para seu "fado tropical"

FÁBIO VICTOR
DO PAINEL FC

O cheirinho de alecrim já provoca mudanças em Luiz Felipe Scolari. Há cinco meses como técnico de Portugal, o comandante da seleção brasileira pentacampeã mundial na Ásia engoliu idiossincrasias para diminuir resistências e não se sentir um completo estrangeiro num país que fala sua própria língua.
O Felipão à portuguesa veste terno e gravata sem resmungar, estuda história, sai à rua para conhecer os hábitos culturais dos "patrícios", visita castelos e trocou o churrasco pelo peixe.
Não significa que Scolari se descarecterizou aos 54 anos. Muito pelo contrário, as marcas que fizeram seu sucesso profissional estão conservadas além-mar. E é com elas que o técnico quer tornar Portugal uma seleção campeã. O desejo dele é a versão boleira do "Fado Tropical" de Chico Buarque e Ruy Guerra, que construíram numa canção uma nação idílica em que guitarras dialogam com sanfonas, sardinhas combinam com mandioca e o rio Amazonas deságua no Tejo.
O primeiro lance da estratégia veio antes do amistoso Portugal 2 x 1 Brasil, em março, quando, a caminho do estádio, o treinador gaúcho colocou no ônibus uma versão do fado "Uma Casa Portuguesa" em ritmo de samba, interpretada pelo cantor Roberto Leal, português radicado no Brasil.
"Mostrei que dava para formar alguma coisa juntando nosso ritmo com o deles. Alguns até dançaram no ônibus e, no jogo seguinte, eles mesmos levaram músicas", contou Scolari, que esteve ontem em São Paulo para fazer uma palestra sobre psicologia no futebol a estudantes de educação física de uma universidade particular, uma gentileza com a psicóloga e amiga Regina Brandão, que o assessora na área.
Quem acompanhou o evento teve a chance de ouvir o exótico arranjo de Roberto Leal, usado no evento como exemplo de motivação. A platéia de universitários, que mais parecia um grupo de colegiais, enchendo o auditório de gritinhos, assovios e brincadeiras (ao entrar, Scolari foi festejado com um berro de "Gene Hackman" vindo do fundão), pôde ainda se surpreender com o bem cortado terno azul do técnico.
Antes classificada como "frescura" e usada só em situações excepcionais, a roupa foi definida como uma de suas "cedências".
"A cultura deles para eventos exige uma participação diferente do meu normal. Faço algumas cedências e tento fazê-los entender que nosso jeito tropical pode ajudá-los. Quem sabe se, com o nosso sangue quente, eu não posso mudá-los?", questionou.
"A principal diferença que sinto é no aspecto cultural. Ainda sou um pouco estrangeiro em Portugal. Por isso procurei me inteirar sobre a história do país, tenho saído de casa um pouco mais para ter contato com as pessoas, para me integrar, saber o que eles acham sobre futebol." Os reflexos das "cedências" chegam à mesa: o técnico começou a comer peixe, prato de que não gostava, e sofre por ter reduzido o churrasco.
O dia de Scolari em Estoril, cidade praiana na região metropolitana de Lisboa, começa às 6h40, quando ajuda a mulher, Olga, a fazer o café dos filhos Leonardo, 19, e Fabrício, 12. Depois, vai caminhar e, no fim da manhã, passa na Federação Portuguesa.
Procura acompanhar de perto pelo menos um jogo do Campeonato Português por semana e gasta o resto do tempo para fazer diplomacia com os técnicos do país ("A rejeição que tinham no começo hoje quase não existe") e dar entrevistas. Aos finais de semana, visita castelos ou igrejas.
Turrão que acumulou encrencas ao longo da carreira, Scolari já teve algumas no novo emprego, mas, como aqui, lá a resistência ao seu estilo diminui com resultados.
Seu maior êxito foi a convocação do meia brasileiro Deco, criticada por muitos no país, inclusive as estrelas Figo e Rui Costa, mas assimilada após o jogador marcar o gol da vitória sobre o Brasil.
A formação dos atletas portugueses, que tratam Scolari por "mister", impressionou o chefe. "São mais cultos que os brasileiros, falam duas ou três línguas."
Se o time ainda não mostrou bom futebol, o retrospecto é animador para um início de trabalho (veja quadro). "Portugal é o único classificado para a Eurocopa e vai jogar em casa. Pesei isso ao assinar contrato. Passo uma imagem de bobinho, mas não sou."
Embora pareça mais sereno e menos irascível, a impressão se revela equivocada quando o assunto é o passado. Ontem Scolari se referiu com rancor aos técnicos que o criticaram quando ele estava na seleção. "Não posso analisar o trabalho do Parreira, porque ele é um colega de profissão, e eu sei muito bem o que é ser analisado por um colega de profissão."
E, ao falar novamente do terno -um dos símbolos da fracassada passagem de Wanderley Luxemburgo pelo time nacional-, sinalizou que a transformação não é tão profunda quanto sugere.
"Tenho usado terno e gravata em certas ocasiões, mas nunca dirigi Portugal assim. Sou o técnico do abrigo. E, de terno e gravata ou abrigo, vou continuar dando bronca do mesmo jeito."


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