São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2007

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JOSÉ GERALDO COUTO

Trinta anos esta noite

Relembrar hoje a vitória corintiana de 1977 lança luz sobre a democracia, a esquerda e o "povo"

HÁ EXATOS 30 anos o Corinthians vencia a Ponte Preta no terceiro jogo de uma final eletrizante e encerrava um jejum de 23 anos sem títulos estaduais. Chegava ao fim a Longa Fila, que por seu caráter épico e dramático deve ser escrita assim mesmo, com iniciais maiúsculas, como a Grande Marcha de Mao Tse Tung ou a Revolução dos Cravos.
Rever hoje aquele momento, com a distância das décadas, pode ser instrutivo não só a respeito do futebol, mas da própria história do país. Nós que éramos jovens de esquerda, ávidos pelo fim da ditadura militar, víamos naquele imenso júbilo popular um prenúncio da aurora democrática e socialista que viria, inexoravelmente, "só porque uma cantiga anunciou". O tempo se encarregou de mostrar o quanto havia de ilusório nesses prognósticos.
As massas, que antes nos entusiasmavam com seu potencial libertador, hoje nos aterrorizam com seu potencial de barbárie. Não é preciso ser um bocó como Luciano Huck, nem tampouco ter um Rolex no pulso, para se sentir acuado, nas cercanias de um estádio, por uma multidão desprovida de dentes, de educação, de trabalho e de sonhos.
Certa vez Marcelo Coelho escreveu, com o brilho habitual, que no Brasil, ao contrário do que costuma acontecer, não era a esquerda que tinha traído o povo, mas sim o povo que traíra a esquerda. Acho que a traição foi mútua. O "povo" não se mostrou à altura das esperanças revolucionárias que a esquerda nele depositava; e por sua vez a esquerda, ao chegar ao poder, retribuiu com a manutenção do status quo opressivo e injusto, mitigado por esmolas como a bolsa-família e correlatos.
Sou corintiano, tinha 20 anos, e até hoje me lembro com nitidez do riso e das lágrimas daquela noite única. Não vou cuspir nesse prato.
Mas hoje, revendo aquelas finais com frieza retrospectiva, é preciso reconhecer, primeiro, que a Ponte Preta (Carlos, Dicá, Oscar, Polozzi, Odirlei, Ruy Rey) era muito mais time que o Corinthians (Zé Maria, Vladimir e o resto); segundo, que a vitória corintiana no terceiro duelo deveu-se muito a uma decisão polêmica da arbitragem: a expulsão do atacante ponte-pretano Ruy Rey, aos 13min de jogo, por reclamação.
Houve, de certo modo, uma pressão irresistível em favor da vitória corintiana. Por um lado, uma pressão legítima, popular e democrática, por parte de uma torcida sofrida e fiel, que no ano anterior já dera uma prova comovente de amor e dedicação ao invadir o Rio na semifinal do Brasileiro contra o Fluminense.
Houve certamente também uma pressão política, complexa e ambígua: a esquerda, como já foi dito, identificava a vitória corintiana com o avanço na luta contra o regime militar; as forças conservadoras apostavam, por sua vez, no triunfo alvinegro como um fator de alívio das tensões que se manifestavam nas passeatas estudantis e na luta pelas liberdades democráticas.
Forçando um pouco a barra, talvez possamos dizer que foi uma vitória populista, em que valores como a lei, a justiça e o mérito foram deixados em segundo plano em nome da satisfação imediata da maioria. À luz do que ocorre hoje, tanto no Corinthians como no país, terá sido, nesse caso, uma amarga vitória.


jgcouto@uol.com.br

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