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JOSÉ GERALDO COUTO
Trinta anos esta noite
Relembrar hoje a vitória corintiana de 1977 lança luz sobre a democracia, a esquerda e o "povo"
HÁ EXATOS 30 anos o Corinthians vencia a Ponte Preta
no terceiro jogo de uma final
eletrizante e encerrava um jejum de
23 anos sem títulos estaduais. Chegava ao fim a Longa Fila, que por seu
caráter épico e dramático deve ser
escrita assim mesmo, com iniciais
maiúsculas, como a Grande Marcha
de Mao Tse Tung ou a Revolução
dos Cravos.
Rever hoje aquele momento, com
a distância das décadas, pode ser
instrutivo não só a respeito do futebol, mas da própria história do país.
Nós que éramos jovens de esquerda, ávidos pelo fim da ditadura militar, víamos naquele imenso júbilo
popular um prenúncio da aurora democrática e socialista que viria, inexoravelmente, "só porque uma cantiga anunciou". O tempo se encarregou de mostrar o quanto havia de
ilusório nesses prognósticos.
As massas, que antes nos entusiasmavam com seu potencial libertador, hoje nos aterrorizam com seu
potencial de barbárie. Não é preciso
ser um bocó como Luciano Huck,
nem tampouco ter um Rolex no pulso, para se sentir acuado, nas cercanias de um estádio, por uma multidão desprovida de dentes, de educação, de trabalho e de sonhos.
Certa vez Marcelo Coelho escreveu, com o brilho habitual, que no
Brasil, ao contrário do que costuma
acontecer, não era a esquerda que tinha traído o povo, mas sim o povo
que traíra a esquerda. Acho que a
traição foi mútua. O "povo" não se
mostrou à altura das esperanças revolucionárias que a esquerda nele
depositava; e por sua vez a esquerda,
ao chegar ao poder, retribuiu com a
manutenção do status quo opressivo e injusto, mitigado por esmolas
como a bolsa-família e correlatos.
Sou corintiano, tinha 20 anos, e
até hoje me lembro com nitidez do
riso e das lágrimas daquela noite
única. Não vou cuspir nesse prato.
Mas hoje, revendo aquelas finais
com frieza retrospectiva, é preciso
reconhecer, primeiro, que a Ponte
Preta (Carlos, Dicá, Oscar, Polozzi,
Odirlei, Ruy Rey) era muito mais time que o Corinthians (Zé Maria,
Vladimir e o resto); segundo, que a
vitória corintiana no terceiro duelo
deveu-se muito a uma decisão polêmica da arbitragem: a expulsão do
atacante ponte-pretano Ruy Rey,
aos 13min de jogo, por reclamação.
Houve, de certo modo, uma pressão irresistível em favor da vitória
corintiana. Por um lado, uma pressão legítima, popular e democrática,
por parte de uma torcida sofrida e
fiel, que no ano anterior já dera uma
prova comovente de amor e dedicação ao invadir o Rio na semifinal do
Brasileiro contra o Fluminense.
Houve certamente também uma
pressão política, complexa e ambígua: a esquerda, como já foi dito,
identificava a vitória corintiana com
o avanço na luta contra o regime militar; as forças conservadoras apostavam, por sua vez, no triunfo alvinegro como um fator de alívio das
tensões que se manifestavam nas
passeatas estudantis e na luta pelas
liberdades democráticas.
Forçando um pouco a barra, talvez possamos dizer que foi uma vitória populista, em que valores como a
lei, a justiça e o mérito foram deixados em segundo plano em nome da
satisfação imediata da maioria. À luz
do que ocorre hoje, tanto no Corinthians como no país, terá sido, nesse
caso, uma amarga vitória.
jgcouto@uol.com.br
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