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São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 2003

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FUTEBOL

Três vezes Cascadura

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

Quando entrei no bar Flor do Lodo, Cascadura jogava uma partida de pebolim com outros três sujeitos. Eles gritavam, sacudiam a mesa com seus golpes e às vezes batiam a cabeça na lâmpada de 20 watts que descia do teto pendurada por um fio cheio de emendas de fita isolante.
Eu tinha na mão três perguntas enviadas por leitores e fiz sinal de que estava com pressa. Cascadura, porém, não se abalou e continuou jogando. Só após fazer o gol da vitória num chute de goleiro é que o grande pensador e ex-zagueiro do Ordem e Progresso veio até mim. A caminho, berrou:
- Uma caracu com ovo para mim e uma Fanta Uva para ele.
Expliquei que estava sem idéias para a crônica (grande novidade!) e, se não fosse incômodo, gostaria que ele respondesse a três perguntas de leitores.
- Tudo bem, disse ele enquanto sentava ao meu lado e pegava uma azeitona.
A primeira questão, do vascaíno Gustavo Cascão, era a seguinte: "Por que existem tantos corruptos no mundo do futebol?".
Cascadura começou a pensar enquanto dava voltas com a azeitona na boca. Depois de dois minutos, cuspiu o caroço e disse:
- Onde vivem os ratos? No esgoto. Onde vivem as moscas? No lixo. Com os corruptos é igual. Eles vivem onde tem dinheiro. Por que você quase não ouve falar de corrupção no remo, no nado sincronizado, no dominó? Porque lá tem menos dinheiro do que na caixa registradora do Flor do Lodo. O que precisa é arranjar um bom inseticida para diminuir os ratos, quer dizer, os corruptos.
- Você está falando da medida provisória?
- Medida provisória é a da minha barriga, pois ela está sempre crescendo. Estou falando é de polícia mesmo. Próxima pergunta.
Depois de copiar essa resposta num bloquinho, passei para a próxima. Era de Cláudio Galvão, corintiano e pai aflito. Ele dizia: "Outro dia meu filho fez um belo gol. Será que ele vai ser craque?".
Cascadura foi taxativo:
- Não. Se o próprio pai tem dúvida é porque o garoto não é lá essas coisas. Os pais sempre acham que o filho é o melhor do mundo. Como até ele tem dúvida, o menino deve ser pior que o Saci, um ponta-direita de uma perna só que jogava lá no Ordem e Progresso. De qualquer forma, se o garoto arranjar um empresário, pode ir longe. Hoje em dia, para conseguir um bom contrato, basta uma boa fita de vídeo e uma propina generosa.
A última pergunta era de Adalberto ("mas pode me chamar de Dadá"), um leitor de conduta sexual pouco convencional. Ele escreveu: "Ultimamente tenho gostado muito de ver jogos de futebol. Será que estou me transformando em heterossexual? Argh!".
Cascadura acabara com as azeitonas e agora descascava um ovo cozido cor-de-rosa. Depois de dar a primeira mordida, respondeu com hálito ovífero.
- Escreve aí: "Adalberto querido, pode ficar tranquilo. Você não está traindo a sua natureza. É que o futebol é uma coisa tão bonita que de vez em quando até parece um balé. Continue assistindo aos seus jogos sem medo. Não é porque um passarinho come aveia que vai virar cavalo".
Então Cascadura levantou-se e disse solenemente: "Vou mijar".
E eu fiquei ali, embevecido, observando-o carregar sua centena de quilos em direção ao banheiro. Não é todo dia que se pode privar da companhia de um verdadeiro filósofo do futebol.

G
Gancho, o goleiro, tinha esse nome por um motivo muito justo: em vez de mão, na ponta do braço direito possuía um gancho. Por causa disso ele jamais largava uma bola, pois elas sempre ficavam presas ao seu agudo espeto. O problema é que Gancho dava muito prejuízo ao seu clube, o Nova York do Maranhão, e assim, apesar de suas qualidades, acabou sendo despedido. Para não se afastar totalmente do futebol, ele tentou algumas outras ocupações. Primeiro quis ser roupeiro, mas rasgava os uniformes. Depois arriscou-se como massagista, mas rasgava os jogadores. Numa última tentativa, quis ser juiz. E este foi seu erro fatal. Num final de tarde de domingo, quando o crepúsculo manchava o azul do céu, Gancho sacou o cartão com a mão errada. Sobre a grama verde, o vermelho de seu sangue misturou-se ao do cartão.

E-mail torero@uol.com.br


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