São Paulo, quarta-feira, 14 de junho de 2006

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Terra em transe

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Torcedores acompanham o jogo do Brasil no vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo


No Anhangabaú, os sem-pátria, os sem-sofá, os sem-amigos e os sem-amores pararam para ver (ou tentar ver) a estréia da seleção de Parreira na Alemanha

XICO SÁ
COLUNISTA DA FOLHA

Amigo torcedor, amigo secador, o vale do Anhangabaú, centrão de SP, se transformou ontem no jardim dos caminhos onde se bifurcam todas as misérias, todas as solidões dos sem-amores ou dos sem-amigos, os sem-sofá, todos os delírios dos cheira-colas e dos meninos do crack, todos os patriotismos dos sem-pátria e sem-patrões, todas as alegrias clandestinas dos sem-teto, todas as frustrações e bolas perdidas do lumpesinato, o Brasil em transe, o país que não consegue chegar nunca em casa a tempo de uma estréia da Copa, ali estavam todos os olhares daqueles que acostumamos chamar, cá entre nós, de perdedores.
O mendigo maneta, de camisa azul-escuro, boné cinza e cobertor do tipo Paraíba, não estava nem aí para o jogo. Do seu canto, não se via o telão gigante. Os seus quatro amigos, aos 10min de partida, tomaram novos goles de pinga e se misturaram à massa. Fácil acompanhá-los: além dos tombos, eram os poucos não vestidos com algo verde-amarelo. Mais um bando de brasileiros cinzentos de São Paulo. Mas cobravam cachê por entrevista. Esqueci as regras do jornalismo e morri com um trocado para mais uma garrafa da branquinha que levava aquela massa ao delírio.
"José dos Santos Lino, anota aí", liberou o primeiro dos mendigos, um sem-coisa-alguma mas também homem com olhar ainda altivo. O cheira-cola atrapalhou o diálogo. Falava como um Guimarães Rosa urbanóide, nonada, não dava para entender quase uma palavra. O travesti, todo borrado de maquiagem, traduziu tudo: "Bando de filho-da-puta perdido, deixa o tiozim [referindo-se a este cronista] em paz".
E o jogo? Ah, algumas famílias, na decência e na estica, apesar de poucos cobres a cada fim de mês, se portavam com civilidade nunca vista. Eram famílias que se apertam em quitinetes ali no centro e famílias que chegaram de longe enganadas pela propaganda oficial do telão. "Não estou vendo nada deste canto", protestava o pai, Alberto Santana de Araújo, 35, um raro entrevistado ali naquele transe bêbado que não teve trabalho para pronunciar o próprio batismo. A mulher, Ivone, 28, mais agoniada ainda. Os meninos, Jonas, 10, Robson, 9, emitiam aqueles grunhidos infantis de revolta.
Uma família pobre daquelas que ainda têm direito a banho, a uma roupinha em conta no mercadão do Brás, um zelo de mãe e um pai que teima, na marra, em não deixar a casa cair por mais que tudo desabe. Araújo é garçom numa lanchonete ali dos arredores do vale. Ivone faz faxina também na área. Estão no time dos que teimam, na várzea da vida, para não cair de divisão social, a terceirona da existência.
Jogo que é bom, quem fosse baixinho, como a família decente, só via as cabeçadas nos escanteios dos altos croatas. Por isso que os homens-gabirus correram para o alto do viaduto do Chá, de onde viam a miragem da pátria em chuteiras.
Para os perdidos das ruas ou os loucos solitários do centrão, tudo era festa, o que quer que fizesse milionário escrete canarinho. Do telão para o chão dos sem-estrelas tanto fazia. "Num ganho nada com isso", berrava um homem-sanduíche existencialista, logo após o gol do Brasil. Não que os perdedores na vida fossem secadores. Ao contrário. A grande massa, noves fora os delirantes bêbados e cheira-colas, vestia o manto do patriotismo verde-amarelo.
Ao fim do jogo, numa terra de gente alegre, havia uma torcida não de tudo triste, mas com um leve olhar de vira-lata -como os cães que acompanhavam os mendigos-, o corpo coçando com as pulgas da desconfiança.


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