São Paulo, sábado, 14 de novembro de 2009

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JOSÉ GERALDO COUTO

A solidão e a massa


O suicídio do goleiro Enke e o destempero de Belluzzo revelam faces opostas da loucura humana


ROBERT ENKE e Luiz Gonzaga Belluzzo. O que esses dois personagens tão diferentes têm em comum? Nada, a não ser o fato de terem sucumbido, no início da semana, a formas opostas de loucura. Vamos ver se me explico.
Enke, goleiro do Hannover e da seleção alemã, jogou-se debaixo de um trem em Neustadt am Rübenberge, a 30 km de Hannover. Tinha 32 anos e morava numa fazenda com a mulher, Teresa. Ambos militavam em defesa dos animais.
O suicida tinha um motivo muito concreto para perder o gosto da vida.
Em 2006, morreu sua filha única, Lara, de dois anos.
Mas a viúva de Enke, Teresa, diz que o marido já sofria de depressão bem antes disso. Seja como for, em maio deste ano o casal adotou um bebê, e o goleiro declarou que tinha recuperado "a alegria de viver". Estaria enganando os outros ou enganando a si próprio?
De modo semelhante, no dia em que desceu aos trilhos e andou em direção ao trem, Enke faltou à sua sessão com o psiquiatra alegando que estava se sentindo muito bem. Já falei aqui da solidão irredutível do goleiro, um ser à parte no universo do futebol. Ele vê o jogo de um ângulo próprio, treina separado dos companheiros, veste um traje diferente e é o único que pode usar as mãos para agarrar a bola e rolar com ela pela grama.
Não deve ter sido por acaso que o pensador Albert Camus e o escritor Vladimir Nabokov, dois intelectuais na contramão de seu tempo, foram goleiros. O goleiro é um espectador melancólico da estéril agitação humana.
Impossível, diante do caso Enke, não lembrar de outro goleiro suicida, o grande Castilho (1927-1987), do Fluminense e da seleção brasileira, pela qual disputou quatro Copas do Mundo.
Em 1987, às vésperas de partir de volta para a Arábia Saudita, onde trabalhava como técnico da seleção daquele país, Castilho se jogou do apartamento de sua ex-mulher, Vilma, no sétimo andar de um prédio em Bonsucesso, no Rio.
Duas hipóteses foram levantadas para explicar o que os jornais de antigamente chamavam de "tresloucado gesto": 1) a segunda mulher de Castilho, Evelyne, rompera com ele dias antes, dizendo que não o acompanharia à Arábia; 2) exames feitos na cabeça do jogador, cujos resultados permanecem desconhecidos, teriam apontado uma doença fatal.
Perda de filho, rompimento com mulher, enfermidade grave, tudo isso abate, é terrível, mas não basta para explicar um suicídio. Há em cada indivíduo, e mais ainda nos goleiros, ao que parece, insondáveis zonas de sombra.
E onde entra o Belluzzo nessa história? Ora, ao contrário dos goleiros suicidas, o presidente do Palmeiras parece ter-se integrado plenamente ao espírito da massa em que está inserido. Agiu, como se costuma dizer, como um torcedor comum.
É a outra face do mistério: o que leva um sujeito culto e ponderado, um dos maiores economistas do país, a incentivar a agressão a um árbitro equivocado, reforçando a ideia perigosa da "justiça com as próprias mãos"? O risco é que um homem como Belluzzo, em vez de civilizar o mundo selvagem do futebol, se deixe barbarizar por ele.

jgcouto@uol.com.br


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