São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2006

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Num Mundial de ginástica, a 1ª vez é inesquecível

Os seis brasileiros de Roma-1954, em odisséia impensável, dizem que abriram caminho para o time que compete hoje

Seleção viajou de navio, enfrentou fome e todo tipo de infortúnio para inscrever o nome no esporte nacional e ter histórias para contar

CRISTIANO CIPRIANO POMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

A ginástica brasileira inaugura na Dinamarca sua 20ª participação em Mundiais. Hoje, em um de seus melhores momentos, nem de longe lembra a primeira, uma odisséia de seis ginastas, que levaram 16 dias para chegar à Itália, passaram fome, frio e toda sorte de infortúnios. Tudo para competir por algumas horas. E, com orgulho, ter muita história para contar.
A ginástica no Brasil, que ganhou status só após o título mundial de Daiane dos Santos em 2003, era vista em 1954 como atividade para manter a forma, sem técnica, aparelhos e, menos ainda, reconhecimento.
Tanto que o time da primeira disputa de Mundial não passou por seletiva ou exigência de índice técnico, e sim uma decisão política da Confederação Brasileira de Desportos, que rateou as vagas entre três Estados.
Com três gaúchos, Nelson Saul, Carlos Heinrichs e Dante Gnoatto, dois paulistas, Paulo Picciafuoco e Carlos Queiroz, e um carioca, Rubens Garcia -hoje são 4 de SP, 1 do RS e 1 do RJ-, a odisséia começou no navio Augustus, rumo a Gênova.
"No embarque, o chefe da delegação só apareceu para dar US$ 50 a cada um e dizer que iria de avião, enquanto nós sofremos no navio. Ficamos uma semana mareados, sem comer, só vomitando", diz Gnoatto, 75.
Relegados à terceira classe do barco, "sem luz e abaixo da linha do horizonte", os atletas se mexeram. "O Saul passou uma lábia no capitão do navio, dizendo que precisávamos da piscina para aprimorar o físico", conta Heirinchs, 71. "Nós passamos a ser ginasta, técnico e dirigente", explica o colega, 76.
A tática funcionou. Alçados à primeira classe, os atletas se tornaram atração. "Não dava para fazer muito, além de correr e treinar mortal, movimentos de solo e paradas de mão. Mas demos show", diz Saul.
"Tinha lá umas 50 uruguaias. Foi uma festa só. Tinha baile quase toda noite", fala Gnoatto.
Após 16 dias para chegar a Gênova, fora de forma, cansados e já sem calo nas mãos, os atletas ficaram mais uma vez a ver navios. "Ninguém nos esperava no porto. Foram horas pensando o que fazer. Até que eu e o Picciafuco descobrimos o trem até Roma", afirma Saul.
Mas, rumo ao hotel, as pernas não respondiam ao comando. "Andávamos com a perna aberta. Não raro, de um lado para o outro, parecia que estávamos no barco", diz Gnoatto.
Após saber que a CBD não inscrevera o país no Mundial, que começaria em dois dias, em 28 de junho, e convencer a organização a aceitá-la, a seleção usou do "jeitinho" no hotel.
"Não sei se por causa da guerra [a 2ª Guerra Mundial], o hotel dava pouca comida. Tive que surrupiar pão", diz Gnoatto. Já o banho foi resolvido no braço. "Pegamos a chave da porta e fizemos a ligação para água quente, que usamos de graça."
Para treinar, a tática foi outra. "Ou grudávamos no time japonês, nos comunicando por mímica, ou entrávamos escondidos nos ginásios", diz Saul.
Já prontos para atuar, os atletas reviram o chefe da delegação, Paulo Stempniewski, que tinha ido à Suíça, onde outra seleção, a de futebol, jogava a Copa. Em seguida, ele se foi, e o grupo perdeu Picciafuoco. "A gente estava no Estádio Olímpico. Todos eram melhores que nós. O Paulo foi testar um movimento, caiu e enfiou a mão numa lança", fala Heinrichs.
Sem reservas, o Brasil ficou fora da prova por equipes. "Para atuar no individual, cortaríamos mais dois. Em acordo diplomático, pegamos um atleta por Estado", diz Heinrichs.
Feita a escolha, o país só figurou no torneio, o último Mundial a céu aberto. "Tinha a prova obrigatória e a livre. Como fomos mal na primeira, ficamos fora da outra", diz Saul, que atuou com Queiroz e Garcia.
"Mas os aparelhos eram outros. Seguimos de carne e osso. Não dava para fazer mortal como Diego Hypólito e Daiane. Poderíamos morrer. Só imitava os bonequinhos das cartilhas."
"A madeira do salto era uma tábua de lavar roupa. Não impulsionava como o trampolim do salto de hoje", diz Gnoatto.
Ao fim do torneio, em 3 de julho, a equipe descartou o Augustus, que sairia 20 dias depois. "Voltamos no navio Provence. Após ver Roma inteira, passamos ainda por Nápoles, Marselha, Barcelona, Lisboa e Dacar. Foi um tour. Mas valeu."
No Brasil, nenhum deles foi mais o mesmo. Queriam impulsionar a ginástica, dar-lhe outro status, só obtido em 2003.
Ficaram ainda um tempo na ginástica, mas não largaram mais o esporte. Um, Saul, treina todo dia. "Faço tênis, vôlei e todos os arremessos do atletismo. Só uso as mãos, porque os joelhos se foram." Outro, Heinrichs, se exercita e se dedica a danças folclóricas. E Dante treina "para não enferrujar."
Apesar da odisséia, eles têm a certeza de que plantaram uma semente para a equipe que compete hoje na Dinamarca e a de que viveriam tudo de novo.


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