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Num Mundial de ginástica, a 1ª vez é inesquecível
Os seis brasileiros de Roma-1954, em odisséia impensável, dizem que abriram caminho para o time que compete hoje
Seleção viajou de navio, enfrentou fome e todo tipo de infortúnio para inscrever o nome no esporte nacional e ter histórias para contar
CRISTIANO CIPRIANO POMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
A ginástica brasileira inaugura na Dinamarca sua 20ª participação em Mundiais. Hoje, em
um de seus melhores momentos, nem de longe lembra a primeira, uma odisséia de seis ginastas, que levaram 16 dias para chegar à Itália, passaram fome, frio e toda sorte de infortúnios. Tudo para competir por
algumas horas. E, com orgulho,
ter muita história para contar.
A ginástica no Brasil, que ganhou status só após o título
mundial de Daiane dos Santos
em 2003, era vista em 1954 como atividade para manter a forma, sem técnica, aparelhos e,
menos ainda, reconhecimento.
Tanto que o time da primeira
disputa de Mundial não passou
por seletiva ou exigência de índice técnico, e sim uma decisão
política da Confederação Brasileira de Desportos, que rateou
as vagas entre três Estados.
Com três gaúchos, Nelson
Saul, Carlos Heinrichs e Dante
Gnoatto, dois paulistas, Paulo
Picciafuoco e Carlos Queiroz, e
um carioca, Rubens Garcia
-hoje são 4 de SP, 1 do RS e 1 do
RJ-, a odisséia começou no navio Augustus, rumo a Gênova.
"No embarque, o chefe da delegação só apareceu para dar
US$ 50 a cada um e dizer que
iria de avião, enquanto nós sofremos no navio. Ficamos uma
semana mareados, sem comer,
só vomitando", diz Gnoatto, 75.
Relegados à terceira classe do
barco, "sem luz e abaixo da linha do horizonte", os atletas se
mexeram. "O Saul passou uma
lábia no capitão do navio, dizendo que precisávamos da piscina para aprimorar o físico",
conta Heirinchs, 71. "Nós passamos a ser ginasta, técnico e
dirigente", explica o colega, 76.
A tática funcionou. Alçados à
primeira classe, os atletas se
tornaram atração. "Não dava
para fazer muito, além de correr e treinar mortal, movimentos de solo e paradas de mão.
Mas demos show", diz Saul.
"Tinha lá umas 50 uruguaias.
Foi uma festa só. Tinha baile
quase toda noite", fala Gnoatto.
Após 16 dias para chegar a
Gênova, fora de forma, cansados e já sem calo nas mãos, os
atletas ficaram mais uma vez a
ver navios. "Ninguém nos esperava no porto. Foram horas
pensando o que fazer. Até que
eu e o Picciafuco descobrimos o
trem até Roma", afirma Saul.
Mas, rumo ao hotel, as pernas não respondiam ao comando. "Andávamos com a perna
aberta. Não raro, de um lado
para o outro, parecia que estávamos no barco", diz Gnoatto.
Após saber que a CBD não
inscrevera o país no Mundial,
que começaria em dois dias, em
28 de junho, e convencer a organização a aceitá-la, a seleção
usou do "jeitinho" no hotel.
"Não sei se por causa da guerra [a 2ª Guerra Mundial], o hotel dava pouca comida. Tive que
surrupiar pão", diz Gnoatto. Já
o banho foi resolvido no braço.
"Pegamos a chave da porta e fizemos a ligação para água
quente, que usamos de graça."
Para treinar, a tática foi outra. "Ou grudávamos no time
japonês, nos comunicando por
mímica, ou entrávamos escondidos nos ginásios", diz Saul.
Já prontos para atuar, os
atletas reviram o chefe da delegação, Paulo Stempniewski,
que tinha ido à Suíça, onde outra seleção, a de futebol, jogava
a Copa. Em seguida, ele se foi, e
o grupo perdeu Picciafuoco. "A
gente estava no Estádio Olímpico. Todos eram melhores que
nós. O Paulo foi testar um movimento, caiu e enfiou a mão
numa lança", fala Heinrichs.
Sem reservas, o Brasil ficou
fora da prova por equipes. "Para atuar no individual, cortaríamos mais dois. Em acordo diplomático, pegamos um atleta
por Estado", diz Heinrichs.
Feita a escolha, o país só figurou no torneio, o último Mundial a céu aberto. "Tinha a prova obrigatória e a livre. Como
fomos mal na primeira, ficamos
fora da outra", diz Saul, que
atuou com Queiroz e Garcia.
"Mas os aparelhos eram outros. Seguimos de carne e osso.
Não dava para fazer mortal como Diego Hypólito e Daiane.
Poderíamos morrer. Só imitava
os bonequinhos das cartilhas."
"A madeira do salto era uma
tábua de lavar roupa. Não impulsionava como o trampolim
do salto de hoje", diz Gnoatto.
Ao fim do torneio, em 3 de julho, a equipe descartou o Augustus, que sairia 20 dias depois. "Voltamos no navio Provence. Após ver Roma inteira,
passamos ainda por Nápoles,
Marselha, Barcelona, Lisboa e
Dacar. Foi um tour. Mas valeu."
No Brasil, nenhum deles foi
mais o mesmo. Queriam impulsionar a ginástica, dar-lhe outro status, só obtido em 2003.
Ficaram ainda um tempo na
ginástica, mas não largaram
mais o esporte. Um, Saul, treina
todo dia. "Faço tênis, vôlei e todos os arremessos do atletismo.
Só uso as mãos, porque os joelhos se foram." Outro, Heinrichs, se exercita e se dedica a
danças folclóricas. E Dante
treina "para não enferrujar."
Apesar da odisséia, eles têm a
certeza de que plantaram uma
semente para a equipe que
compete hoje na Dinamarca e a
de que viveriam tudo de novo.
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