São Paulo, terça-feira, 16 de setembro de 2008

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JOSÉ ROBERTO TORERO

As pernas e as pedras


Zé Cabala joga luz sobre uma história inédita para meus ouvidos, de craque cobiçado que teve a carreira encurtada


LOGO QUE cheguei à sacrossanta casa de Zé Cabala, disparei: "Hoje quero uma história diferente. Nada de ex-craques conhecidos. Preciso de uma história que os leitores nunca tenham ouvido!".
Então o carteiro das almas, o mensageiro dos espíritos, o e-mail dos desencarnados, concentrou-se, deu dois pulos com o pé direito, dois com o pé esquerdo, sentou-se no sofá em posição de lótus e disse: "Pois acho que a minha história você nunca escutou." "Quem é você?", perguntei.
"A turma da geral me chamava de Josa."
"Você jogou em qual time, Josa?" "No glorioso Treze de Campina Grande. Era o ano de 1973. Eu tinha 19 anos e estava começando no time de cima. Era um ponta-direita dos bons. Na minha primeira temporada, já fiz sete gols em dez jogos."
"Boa média!" "Não é à toa que quatro times estavam atrás de mim: Sport, Bahia, Ceará e o Botafogo do Rio."
"E você foi para qual?" "Para nenhum. É que, no dia 25 de março, o Treze foi jogar contra a seleção de Salgueiro, em Pernambuco.
Não queria ir porque era justo o dia do meu noivado. Mas a diretoria falou que não tinha jeito. Até chorei de desgosto. Mas fui. Cancelei o almoço na casa dos pais da noiva e fui."
"Pelo menos ganharam o jogo?" "Que nada. Perdemos de 2 a 1." "Triste, triste..."
"Mas o pior foi que a gente teve que voltar naquela noite mesmo." "E aí?" "E aí, lá pela meia-noite, quando a gente chegou à cidade de Patos, o ônibus parou para que a gente fizesse um lanche. O motorista estava meio sonolento. E, ainda por cima, tomou chá de canela em vez de café.
Então nós, do time, combinamos que sempre ia ficar alguém do lado dele para conversar. Assim ele não ia dormir no volante." "Isso é um perigo." "Nem me diga. Daí, quando a gente estava perto de Junco do Seridó, eu, que estava sentado lá pelo meio do ônibus, levantei e fui ficar no lugar do João Palmeira, que era o goleiro reserva do time e estava na cadeira do lado do motorista. Cheguei e disse: "E aí, motorista? Não vamos dormir, hein?". Então sentei-me e comecei a conversar com ele. Mas em algum instante ele cochilou e acertou um caminhão carregado de pedras que estava na nossa frente." "Logo um caminhão de pedras?" "Pois é. As pedras entraram dentro do ônibus e foi um estrago danado. O Gil Silva teve várias costelas quebradas, o Edson ficou cego por dois dias e o Armando rompeu o tendão-de-aquiles." "Foi nesse dia que você morreu?", disse eu lacrimejando. "Que nada! Ainda vivi mais de 30 anos. Mas as pedras esmagaram minhas pernas. Elas foram enterradas no cemitério de Monte Santo. E eu, que era uma promessa, nunca mais pude jogar futebol." "Triste, triste..." "São coisas da vida, não vamos fazer drama. Após o desastre, usei pernas mecânicas, andei, brinquei, dancei, casei e tive dois filhos. Um deles, o Josinha, até jogou no Treze. Depois, morri por conta de outras coisas. Mas isso não tem jeito, todo mundo morre um dia. Pelo menos, enquanto estive por aqui, fui um cara feliz. O que mais se pode querer?"

torero@uol.com.br



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