São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Biografia de Tostão consagra o pacato que a bola ainda faz fervilhar



'Achava bom e ruim. Ficava tenso com as pessoas vendo minha cara na televisão'
MATINAS SUZUKI JR.
do Conselho Editorial

No aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte, há um curioso quiosque de parassematografia, vendendo brasões dos principais sobrenomes de origem européia que podemos encontrar no Brasil.
Ali, descobre-se, por exemplo, que dois leões vermelhos olhando para você, subindo por uma faixa oblíqua branca, que recorta do alto do canto esquerdo até o canto baixo direito o fundo verde da insígnia, que é encimada por uma faixa horizontal listrada de branco e vermelho, representam o brasão da família Gonçalves.
A banca heráldica também ensina que a família Gonçalves é de origem espanhola, da Galícia, e que a linhagem portuguesa foi inaugurada por Antão Gonçalves. Por méritos aos serviços prestados à Coroa, ele tornou-se senhor do Alentejo, visconde e arquiduque, tendo direito à brasão. Seu nome consta no "Livro do Armeiro Mór", datado de 1509.
Meia hora depois de eu ter visto o brasão da família Gonçalves portuguesa, um brasileiro chamado Gonçalves deixa entreaberta para mim a porta de uma das duas coberturas dúplex de um edifício na rua Curitiba, no bairro de BH conhecido como Lurdes.
O apartamento, pintado em amarelo, é confortável, está bem organizado, nota-se que houve um cuidado com a decoração, mas, sobretudo, chama a atenção o fato de não haver uma única peça de culto à personalidade do Gonçalves que nele vive.
Nem sequer um porta-retrato com a foto das suas conquistas, nem sequer um troféu nas paredes, nem mesmo o porteiro chama-o pelo nome com o qual ficou famoso: ali vive discretamente o discretíssimo mineiro Eduardo Gonçalves e, se o seu rosto conhecido não fosse a única peça a trair vivamente o anonimato geral da casa, ninguém diria que ali reside e trabalha o maior jogador de futebol de Minas de todos os tempos, um campeão do mundo em uma das melhores seleções de futebol de todos os tempos, um ex-médico e, atualmente, o mais promissor comentarista de partidas de futebol do Brasil e um colunista esportivo que fazia falta à imprensa.
O Gonçalves que me recebe vestindo camisa pólo vermelho-escuro de mangas compridas e jeans não ostenta nenhum símbolo de nobiliarquia no seu reino terrestre, cujo brasão, na verdade, é uma vida exterior muito simples, mas transporta um relicário na sua personalidade complexa, na sua relação conflituosa com a fama ("o meu relacionamento com a fama era muito conturbado, não era sadio", me diz), na sua angústia em descobrir o significado maior das coisas, ao mesmo tempo em que come o pão-de-queijo de cada dia assado com o gostoso polvilho da integridade.
Três coisas preocupam Eduardo Gonçalves Andrade nesta manhã de quinta-feira. Seus dois filhos, que tinham ido ao Mineirão ver o jogo do Cruzeiro na noite anterior e ele não falara com eles até agora, o livro que escreveu -motivo dessa nossa conversa de quase cinco horas- e, por último, a difícil escolha entre a ESPN Brasil e a Sportv, já que a Bandeirantes, com a qual tem contrato até o final da Copa de 98, não o liberou para participar da programação das TVs abertas (ele tinha um convite do "Cartão Verde", da Cultura, e outro da TV Globo de Minas).
O primeiro problema resolve-se em um grande sorriso e um abraço carinhoso. Quando estava no terraço da cobertura (sob um luminoso céu azul que refletia o azul das ruas de BH, em um "ton sur ton" que celebrava a vitória do Cruzeiro contra o time peruano do Sporting Cristal, dando ao time mineiro a sua segunda Libertadores, título que, aliás, o Cruzeiro maior de Tostão não conseguiu) sendo fotografado pelo Paulo Giandália, da Folha, chega a bonita estudante de direito Mariana para dizer ao pai que foi tudo OK, ela havia ficado em um lugar ruim no Mineirão, mas o estádio estava lindo, tinha muita gente na festa de comemoração do título na Savassi e então ela foi embora cedo, e que havia visto o irmão, André (estudante de engenharia), e que ele estava bem.
"Esse time do Cruzeiro é médio, do ponto de vista técnico, não tem nada de brilhante, mas foi um time bem estruturado pelo Paulo Autuori, que se planejou bem para disputar a Libertadores", diz. Curioso: o timaço do Cruzeiro da década de 60, que chegou a ser campeão brasileiro em cima do Santos, em 66 (ganhou de 6 x 2, em BH, e de 3 x 2, em São Paulo), nunca conquistou a Libertadores.
Eduardo Gonçalves, ou melhor, nesse momento o Tostão explica: o Cruzeiro era o terceiro time de Minas, fez um esquadrão (Raul, Piazza, Dirceu Lopes, Zé Carlos e outros) por acaso e não tinha a menor estrutura para participar de competições internacionais.
A segunda preocupação de Eduardo Gonçalves seria amenizada dez minutos depois: um telefonema de São Paulo da editora do livro de Tostão na DBA, Adriana Amback, avisa-o que os primeiros exemplares da obra acabavam de chegar da gráfica e estavam sendo enviados para ele em Belo Horizonte. O livro chama-se "Tostão: Lembranças, Opiniões, Reflexões sobre Futebol" e será lançado na Bienal do Livro do Rio, nos próximos dias 22 e 23. Ele custa R$ 19 e traz um útil e didático apêndice com as formações táticas mais utilizadas no futebol.
"A idéia de fazer o livro apareceu quando eu comecei a fazer uma coluna para um jornal aqui de BH", conta o Eduardo/Tostão. "Eu escrevi o livro em um mês. Depois passei seis meses cortando, cortando. Quando ficou pronto, eu fiquei um mês na dúvida se valia a pena publicar ou não", diz.
A terceira preocupação só seria resolvida no final da tarde da quinta-feira. Eduardo Gonçalves decidiu que Tostão irá, a partir de setembro, para a ESPN Brasil.
"Nós queremos que o Tostão tenha toda a liberdade de ação", diz José Trajano, diretor de esportes da ESPN Brasil. "Se quiser ser entrevistador, ele será, se quiser comentar jogos, ele comentará, e nós estamos abertos às sugestões que ele possa trazer para a gente", afirma Trajano.
Até agora, está definido que Tostão comentará partidas do Campeonato Brasileiro e participará dos programas especiais dedicados à Copa do Mundo de 98, sendo, inclusive, um dos enviados ao sorteio das chaves.
Tostão conta que voltou ao futebol aos poucos. Foi com o filho à Copa da Itália ("cheguei nas quartas-de-final e no único jogo que vi a seleção brasileira foi desclassificada. Fui chamado de pé frio") e, também estimulado pelo filho, voltou às partidas no Mineirão.
Em 94, foi convidado para escrever sobre a Copa dos EUA pelo jornal "O Estado de Minas". Pouco tempo depois, a TV Bandeirantes convidou-o para participar do programa "Apito Final", que seria gerado ao vivo todas as noites de Dallas, no Texas.
Durante a Copa, Tostão acabou também preenchendo a falta de comentaristas para alguns jogos.
"O ambiente mexeu muito comigo. Eu fiquei muito excitado, achando tudo aquilo muito gostoso, mas também estranho. Eu achava bom e achava ruim, eu ficava tenso com as pessoas vendo a minha cara na televisão", diz.
Durante um ano ficou no que chama de "período de transição": viajaria poucas vezes e continuaria trabalhando como professor de medicina. A desilusão (relutei em usar esta palavra, mas ele disse "é desilusão mesmo") e o rompimento com a profissão para a qual estudara muito e se formara em 1981 ajudaram a devolvê-lo ao futebol:
"Estava vivendo um momento frustrante na medicina. Piorava o nível de ensino, os alunos reclamavam, e o hospital universitário, onde eu trabalhava oito horas por dia, estava cada dia pior. Para sobreviver, a faculdade passou a atender como serviço público, recebendo ajuda do governo. Nós, professores, viramos médicos do Inamps na faculdade, trabalhando em péssimas condições e com os alunos insatisfeitos. Sentia-me conivente com todo esse absurdo que é o sistema de saúde no Brasil, que não tem o mínimo respeito pelo ser humano".
Há cerca de seis meses, começou a escrever uma coluna para o "Diário da Tarde", um jornal popular de BH. "O Teodomiro Braga, do 'Jornal do Brasil' aqui em Belo Horizonte, que lia as minhas colunas, avisou o pessoal da agência 'JB'. Eles me pediram algumas, gostaram, e passaram a vender para vários jornais, incluindo 'O Estado de S. Paulo', em São Paulo".
A coluna de Tostão foi um sucesso instantâneo. Quando cheguei ao seu apartamento, na quinta, ele estava escrevendo a coluna para hoje. "Quero saber como o Zagallo vai fazer para encontrar um substituto para o Flávio Conceição", disse ele.
O Zagallo de hoje nos leva inevitavelmente ao Zagallo de 70. Em que momento, por qual razão, o técnico aceitou finalmente que ele jogasse ao lado de Pelé?
"Como você escreveu em uma das suas colunas, o Zagallo é realmente uma pessoa que de vez em quando nos surpreende. Na cabeça dele, ele não abria mão da necessidade de eu jogar na frente. Eu não poderia continuar voltando para buscar a bola", diz.
"Teve um treino, uns 15 dias antes Copa, em que, de repente, surpreendentemente, ele chega para mim e diz: você é quem vai jogar como titular. Na minha cabeça, cheguei até a desconfiar, embora isso fosse algo subjetivo, que o Zagallo iria me escalar apenas para provar que a pressão em cima dele para eu jogar não se sustentava em campo. Em parte, ele tinha razão. Ele queria que o Pelé e o Jairzinho voltassem quando o adversário estivesse com a bola e precisava de um jogador mais à frente. Ele achava que eu não me sairia bem lá na frente, de costas para o gol. Só que ele não sabia que eu me considerava um jogador ideal para essa função", diz Tostão.
"Eu tinha consciência de que o Brasil precisava de um jogador técnico na frente, inteligente e de passe correto, porque a explosão do Pelé e do Jairzinho era tão grande, que quem estivesse no meio precisava facilitar o trabalho deles."
Daí nasceu o mito, que Tostão detesta, de que ele jogava sem a bola. "Em toda a minha carreira eu só joguei com a bola, fazendo passes, fazendo gols", diz.
Copa conquistada, Tostão teve que comemorar quase pelado, e novamente o diálogo crítico consigo mesmo: "Eu saí da Copa feliz, mas frustrado. Eu não falo isso no livro, mas eu saí com a sensação clara de que havia jogado mal. Eu saí com a sensação de que fui um mero coadjuvante. Depois, com o tempo, fui revendo essa sensação e consegui perceber que tive participação decisiva em alguns jogos".
Para nenhum outro jogador, o desafio daquela Copa foi tão grande. Menos de um ano antes, no Pacaembu, em um dia chuvoso e triste, o zagueiro Ditão (irmão de outros jogadores e também irmão do Adílson, do basquete) do Corinthians, rebate com força uma bola que pedia para se transformar apenas em um passe. Ela atinge o olho de Tostão, que estava caído, e descola a sua retina, uma marca que o seu olhar carrega até hoje.
Tostão operou o olho esquerdo em Houston, nos EUA. Tinha até abril de 70 para se recuperar. A Copa começaria em junho. Às vésperas do Mundial, outro drama: já no México, ele sofre uma grande hemorragia externa no olho operado. No livro, esses momentos são assim descritos: "A comissão técnica ficou preocupada, tensa, insegura. Aí entrei em pânico e disse a eles que estava conformado, compreendia a situação e, mesmo com a palavra do médico, poderiam me dispensar se decidissem assim".
Dois homens foram importantes no processo de recuperação: do ponto de vista clínico, o médico Roberto Abdala, que o operou e ia, inclusive, para o vestiário da seleção (Tostão deu para ele a sua medalha de campeão do mundo), do ponto de vista psicológico, o jornalista e técnico da seleção nas eliminatórias, João Saldanha, que disse que esperaria Tostão o tempo que fosse necessário.
Para Tostão, Gérson foi o jogador fundamental naquela seleção de 70. "O capitão era o Carlos Alberto, mas quem mandava em campo era o Gérson", diz. "Só ele tinha alguma ascendência sobre o Zagallo." Gérson não só arrumava o time em campo como se transformou de armador em um grande volante com função de marcador.
"Em um debate no 'JB' ia dizer que o Gérson foi o grande marcador da seleção de 70 e o Zagallo falou antes. Então eu disse para ele: porque não dá, agora, então, para improvisar um bom meia, que saiba passar bem a bola, em volante de marcação?".
Três anos depois, infeliz em um Vasco no qual via muito pouco profissionalismo, ainda um jovem de 26 anos, Tostão volta a ter problemas no olho esquerdo e tem de deixar o futebol, com prejuízos financeiros e muita mágoa de dirigentes de Cruzeiro e Vasco.
Envolve-se totalmente com a carreira de médico que vai deixar 21 anos depois. Escreve: "Foi uma grande experiência, humana, alegre, triste, mas a vida é curta, e eu tinha de viver outras vidas".
Uma nova vida poderia ter sido Freud e a psicanálise. Não foi. Essas outras vidas estão começando de novo no futebol e ele não entende como um sujeito tão pacato, que, se depender dele, não sai de casa de jeito nenhum, pode passar por tanta experiência diferenciada e por tantos extremos.
"Quando eu estava na faculdade, eu me separei totalmente do futebol. Parecia que eu tinha duas vidas. As pessoas me perguntavam: como você consegue ficar tão longe do futebol? Eu mesmo não sabia responder", diz ele.
Pergunto qual foi o melhor jogador que ele viu jogar em Minas? "O Reinaldo", ele responde. Retruco: não te parece uma coincidência terrível que vocês dois tenham sido atacantes, que vocês dois tenham sido jogadores com posicionamento ideológico de esquerda e com grandes curiosidades intelectuais, e que ambos tivessem que interromper, por problemas físicos, a carreira tão cedo? Há algo de especificamente mineiro traçado nesse destino?
"Eu vou te dizer uma coisa espantosa: o grande craque do passado mineiro, o Guará, teve que parar de jogar muito cedo também, teve um problema cerebral no auge da carreira. Eu sempre fui mais equilibrado, mas a fama mexeu muito com a personalidade do Reinaldo. Aparentemente, o meu acidente não tem nada a ver com o dele. Mas a psicanálise sempre procura um elo de ligação entre essas coisas. Até onde vai o desejo consciente de procurar um acidente, isso ainda é um mistério."
Tostão diz que está contente porque Reinaldo vai se recuperando muito bem. "A última vez que eu viajei com ele, ele estava lendo um livro do Nietzsche", diz. Eu pergunto: e você, o que anda lendo? "Acabei de reler o 'Grande Sertão', do Guimarães Rosa, andei relendo o Machado de Assis e a Clarice Lispector, que leio sempre."
No livro ele cita a frase de Clarice: "O corpo é a sombra da alma".
Tostão, como o nome Gonçalves, veio de Portugal para o Brasil. Valia cem réis. Passou a significar coisa pequena, daí o apelido para o molequinho que jogava com os grandes melhor do que os grandes (já era profissional aos 16 anos).
Poderia também valer para a simplicidade do Eduardo Gonçalves. Volto para São Paulo intrigado com a introspecção mineiramente simples deste Tostão. Dentro dessa pedra mora um vulcão.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.