São Paulo, sábado, 18 de maio de 2002

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MOTOR

A F-1, nua e crua

JOSÉ HENRIQUE MARIANTE
EDITOR-ADJUNTO DE ESPORTE

Zeltweg foi uma corrida cruel. De tempos em tempos, não encontro explicação para isso, a F-1 produz corridas assim, cheia de ocorrências, como se fosse um episódio de Speed Racer, onde acontece de tudo e os rivais não são simplesmente ultrapassados, precisam explodir em fogo e fumaça antes de sumirem da tela.
Ninguém se revolta com a violência do desenho, pois existe nele um sentido de justiça. Maniqueísta, simplista, mas existe. Speed e o Corredor X não são esportistas, são soldados a serviço do bem ou qualquer coisa assim. A vitória cabe a eles, os justos. A derrota, aos vilões, com ou sem fogo.
Zeltweg mandou gente para o hospital, fez vários pilotos abandonarem seus carros em chamas. Mas ninguém vai lembrar disso, claro. Ao contrário de Imola-94 e de outras corridas trágicas, não foram os justos a padecer no incinerador, foi o chamado resto.
O olhar assustado de Sato na janela do helicóptero foi apenas mais uma cena. A corrida austríaca foi cruel por afrontar o público e sua noção de justiça, que é bem semelhante àquela experimentada no desenho. O mais rápido não venceu, foi alijado da vitória pela Equipe X, que no domingo atendia pelo nome de Scuderia Ferrari e usou o rádio como arma letal a metros da chegada.
Naquelas voltas finais, Barrichello não era um piloto Ferrari. Era um herói, brasileiro para nós, anti-Schumacher para o resto do mundo. Ia fazer o impossível, ser mais rápido que o alemão com o mesmo carro. Uma esperança juvenil, típica de quem acompanha esporte. Torcemos pelo mais fraco, torcemos pelo cachorro morto, torcemos pela Lituânia contra o Dream Team e sua arrogância.
A tantos metros do fim, o desenho acabou. A F-1 real, da grana e dos contratos, se impôs. Barrichello, dentro do carro, sabia que não estava em uma película e tirou o pé. Como escreveu o colega Fábio Seixas, neste espaço, na semana passada, jurou como um mafioso e cumpriu. Pelo mesmo motivo, Schumacher acelerou. Também havia feito o juramento: "team orders". Ordens do time. Barrichello e Schumacher, antes de esportistas, foram soldados.
Talvez por ser novo na facção, o brasileiro nem se deu conta do que havia acontecido, ficou feliz por ter sido alçado pelo companheiro ao posto mais alto do pódio. O alemão, beneficiado, logo que ouviu as vaias do público percebeu o tamanho da bobagem.
Brawn, Todt e Montezemolo nunca irão admiti-la. São executivos, trabalham o mito ferrarista como negócio. Enzo Ferrari, creio, faria igual. Dizem que não, mas acho que o vêem também como mito, à prova de defeitos.
Só que o público preferiu se manter no desenho. Barrichello, o mais fraco, foi o mais rápido, deveria vencer e ponto. De nada adianta explicar que a F-1 é, como disse Schumacher, um esporte de equipes. Que seus carros são obrigados a ter a mesma pintura por causa disso. E que quando eles são vermelhos, o piloto, mesmo sendo o melhor, é detalhe.
Não adianta escrever que quem acreditou em uma vitória de Barrichello no domingo pouco entendia de F-1 ou se deixou levar pela fantasia juvenil que por vezes a categoria desperta. Que tudo isso, por mais absurdo que pareça, é um esporte e tem sua lógica.
A mesma noção de justiça que absolveu Senna de jogar o próprio carro em Prost para ser campeão nunca absolverá a Ferrari.

Desculpa
Dizem que a ordem partiu de Luca Montezemolo. Duvido. É bem mais provável que tenha saído da cabeça de Jean Todt, o sujeito que já decidiu o vencedor de um Paris-Dacar na moedinha. O presidente da Ferrari, pressionado pela maior crise da história da Fiat, no máximo avalizou. E não poderia fazer diferente. Quebraria toda a hierarquia e a estrutura montada para fazer de Schumacher o maior campeão da história da F-1.

Desculpa da desculpa
Os times britânicos aproveitam a crise financeira e agora moral da F-1 para lançar outra empresa para comprar os direitos da categoria do falido grupo Kirch. Tudo bem que a Ferrari deu a deixa, mas é esse tipo de coisa que pode mandar a F-1 para o espaço de vez.

Sem desculpa
Schumacher perdeu a chance de limpar a ficha.

E-mail mariante@uol.com.br



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