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O mais longo dos dias
O domingo amanheceu luminoso em Salvador. Com o sol brilhante, o mar da praia de Ondina, em frente ao hotel onde acordou o Palmeiras, ficou ainda mais verde-esmeralda. O céu era de brigadeiro.
O cenário perfeito para uma história feliz começou a se esvair horas mais tarde, numa cabeçada de Allann Delon, se desmilinguiu nos gols de Aristizábal e Zé Roberto e acabou-se de vez num toque de André.
O clima de normalidade que reinou na concentração desde a tarde de sábado, quando chegou à
capital baiana, transformou-se
num ar carregado e de luto. "De
velório", respondeu o técnico Levir Culpi após a derrota, descrevendo o ambiente do vestiário.
Uma história de 88 anos, que
bem poderia ser contada como
uma ópera -espetáculo de alma
italiana como o Palmeiras- teve
ontem uma de suas passagens
mais trágicas.
Foi um atestado de que as quase
24 horas de tranquilidade vividas
pelo time na Bahia antes do jogo
escondiam algo muito ruim.
A descontração de Zinho estava
lá, na recepção aos parentes baianos na véspera e no dia da partida.
O olhar blasé de Dodô era o mesmo de sempre, assim como a mudez de Mustafá Contursi, presidente do clube há uma década.
"Não vou dar entrevista, o momento não é para isso", disse o dirigente pouco antes de deixar o
hotel em direção ao Barradão.
Quando o jogo terminou, Contursi foi o primeiro a deixar o estádio. Só falou mais tarde, no hotel.
A frieza de Culpi também não
foi afetada. Os 30 anos de futebol
-16 como técnico- transformaram os abalos emocionais em
algo cada vez mais raro. "Já tive
sensações bem mais apertadas do
que essa", disse ele na véspera,
frase que repetiu depois da queda.
O mais longo dos dias na história de 88 anos do Palmeiras começou, na verdade, na véspera.
No Estado mais religioso do
país, o time, que se habituou nos
últimos anos a se amparar na religião nos momentos difíceis, foi
recepcionado no aeroporto Luís
Eduardo Magalhães por uma
baiana distribuindo fitinhas do
Nosso Senhor do Bonfim. Ela
amarrou uma, branca com letras
pretas, no braço de Levir Culpi.
Desprezando a tradição, o técnico não fez nenhum dos três pedidos enquanto a baiana dava os
nós na fita. "Não faço pedido nenhum, porque tenho vergonha.
Ganhei tanta coisa boa na vida
que não dá para pedir mais." Culpi arrancou a fitinha horas depois.
O recurso usado por ele em sua
gestão no Palmeiras foi outro: palestras e vídeos de motivação, coqueluche dos treinadores brasileiros. Em pouco mais de um mês e
nos 18 jogos à frente do time, o
técnico exibiu para os atletas histórias de vida que, na sua avaliação, serviriam como exemplo.
Uma das fitas narrava a saga da
paranaense Dailza Damas, que,
de tanto levar os filhos à natação,
resolveu um dia ela mesma cair
na água e já cruzou duas vezes o
Canal da Mancha, deu a volta na
ilha de Fernando de Noronha e
atravessou o Mar da Galiléia.
Mas o Palmeiras não conseguia
repetir Dailza -e Culpi abriu
mão dos vídeos antes de enfrentar
o Vitória. "Vai mostrar o quê?
Agora não tem mais o que falar
nem motivar", afirmou Zinho.
O treinador fez uma palestra rápida anteontem à noite e outra
horas antes do início do jogo, ambas no hotel e focadas na tática.
Mas, no vestiário do Barradão, a
motivação e a religião voltaram a
ter espaço. Culpi e o preparador
físico Valmir Cruz aqueceram os
jogadores sob gritos de incentivo
como "todo mundo ligado" e "vamos conseguir". Num altar improvisado, velas foram acendidas
ao lado de várias imagens de santos -entre elas uma Nossa Senhora Aparecida verde. A santa
foi escolhida pela torcida do Palmeiras para proteger o time.
Na noite do sábado, Dodô e Lopes foram os últimos a subir para
os quartos, pouco depois das 23h
-ficaram conversando com o
preparador físico.
Itamar foi o primeiro a acordar
e o único, além de Culpi, a tomar
café da manhã. A maioria acordou depois das 11h.
Ao meio-dia, o time almoçou filé de peixe à milanesa, frango, creme de palmito, arroz e macarrão.
Descansaram por instantes, ouviram a preleção e foram ao estádio.
A delegação palmeirense chegou ao Barradão, às 14h45, uma
hora e 15 minutos antes do início
da partida, num ônibus da viação
Águia Branca. O estádio, que não
reunia ainda nem 500 torcedores,
era um mar de tranquilidade, exceto por um detalhe: o placar eletrônico marcava Vitória 4 x 0 Palmeiras. Em campo, um time de
garotos vestidos de vermelho e
preto dominava outro com camisas verde e branco. Foi 10 a 0.
Quando o Palmeiras entrou em
campo, às 16h (com um sol de
15h, do horário de verão), o calor
era forte -por volta de 30C.
A tranquilidade que emanava
do Palmeiras em Salvador até a
tragédia do rebaixamento era tanta que o time caiu quase sozinho.
Ao desembarcar na cidade, foi recepcionado por apenas seis torcedores. No Barradão, não havia
mais que 300 pessoas apoiando.
Até a Mancha Alviverde, maior
torcida organizada do clube, que
nos últimos anos se acostumou a
seguir o Palmeiras onde quer que
ele fosse, praticamente sumiu.
Somente dois torcedores da
Mancha em SP foram à Bahia.
Com seu próprio dinheiro, Luciano de Melo Luizi, 23, e Carlos
Gustavo Vieira, 21, compraram só
o trecho de ida da mais barata
passagem aérea, da companhia
BRA. Pagaram R$ 320.
Chegaram às 10h15 de ontem a
Salvador, mas não sabiam quando nem como voltariam. "Mais
tarde vamos passar no hotel do
Palmeiras e ver se a diretoria consegue resolver nosso problema",
disse Luizi antes do jogo. Até as
22h, eles tentavam, em vão, conseguir a ajuda de algum dirigente.
Receberam dez ingressos da diretoria do clube pouco após o desembarque. Venderam cinco, arrecadando R$ 50 -uma garantia
para o caso de não terem ajuda.
De uma ou outra forma, estavam
conformados de voltar de ônibus.
Apesar de o time ter ficado quase órfão no seu momento mais
crítico, Levir Culpi só era elogios
para os torcedores.
"Não podemos esperar mais nada dessa torcida. Foram além dos
limites normais. Não lembro ter
assumido o time num momento
tão ruim e ter tido tanto apoio. No
São Paulo, eu andava na ponta da
tabela e todo dia era criticado."
Ontem, a pequena torcida calou
e chorou no Barradão. No final do
jogo, ouviu a do Vitória cantar:
"Ão, ão, ão, segunda divisão".
César debulhou-se em lágrimas.
Zinho levou as mãos à cabeça. O
sol ainda iluminava Salvador, mas
no céu já era possível avistar uma
enorme lua cheia.
(FÁBIO VICTOR)
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