São Paulo, segunda-feira, 18 de novembro de 2002

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O mais longo dos dias

O domingo amanheceu luminoso em Salvador. Com o sol brilhante, o mar da praia de Ondina, em frente ao hotel onde acordou o Palmeiras, ficou ainda mais verde-esmeralda. O céu era de brigadeiro.
O cenário perfeito para uma história feliz começou a se esvair horas mais tarde, numa cabeçada de Allann Delon, se desmilinguiu nos gols de Aristizábal e Zé Roberto e acabou-se de vez num toque de André.
O clima de normalidade que reinou na concentração desde a tarde de sábado, quando chegou à capital baiana, transformou-se num ar carregado e de luto. "De velório", respondeu o técnico Levir Culpi após a derrota, descrevendo o ambiente do vestiário.
Uma história de 88 anos, que bem poderia ser contada como uma ópera -espetáculo de alma italiana como o Palmeiras- teve ontem uma de suas passagens mais trágicas.
Foi um atestado de que as quase 24 horas de tranquilidade vividas pelo time na Bahia antes do jogo escondiam algo muito ruim.
A descontração de Zinho estava lá, na recepção aos parentes baianos na véspera e no dia da partida. O olhar blasé de Dodô era o mesmo de sempre, assim como a mudez de Mustafá Contursi, presidente do clube há uma década.
"Não vou dar entrevista, o momento não é para isso", disse o dirigente pouco antes de deixar o hotel em direção ao Barradão. Quando o jogo terminou, Contursi foi o primeiro a deixar o estádio. Só falou mais tarde, no hotel.
A frieza de Culpi também não foi afetada. Os 30 anos de futebol -16 como técnico- transformaram os abalos emocionais em algo cada vez mais raro. "Já tive sensações bem mais apertadas do que essa", disse ele na véspera, frase que repetiu depois da queda.
O mais longo dos dias na história de 88 anos do Palmeiras começou, na verdade, na véspera.
No Estado mais religioso do país, o time, que se habituou nos últimos anos a se amparar na religião nos momentos difíceis, foi recepcionado no aeroporto Luís Eduardo Magalhães por uma baiana distribuindo fitinhas do Nosso Senhor do Bonfim. Ela amarrou uma, branca com letras pretas, no braço de Levir Culpi.
Desprezando a tradição, o técnico não fez nenhum dos três pedidos enquanto a baiana dava os nós na fita. "Não faço pedido nenhum, porque tenho vergonha. Ganhei tanta coisa boa na vida que não dá para pedir mais." Culpi arrancou a fitinha horas depois.
O recurso usado por ele em sua gestão no Palmeiras foi outro: palestras e vídeos de motivação, coqueluche dos treinadores brasileiros. Em pouco mais de um mês e nos 18 jogos à frente do time, o técnico exibiu para os atletas histórias de vida que, na sua avaliação, serviriam como exemplo.
Uma das fitas narrava a saga da paranaense Dailza Damas, que, de tanto levar os filhos à natação, resolveu um dia ela mesma cair na água e já cruzou duas vezes o Canal da Mancha, deu a volta na ilha de Fernando de Noronha e atravessou o Mar da Galiléia.
Mas o Palmeiras não conseguia repetir Dailza -e Culpi abriu mão dos vídeos antes de enfrentar o Vitória. "Vai mostrar o quê? Agora não tem mais o que falar nem motivar", afirmou Zinho.
O treinador fez uma palestra rápida anteontem à noite e outra horas antes do início do jogo, ambas no hotel e focadas na tática.
Mas, no vestiário do Barradão, a motivação e a religião voltaram a ter espaço. Culpi e o preparador físico Valmir Cruz aqueceram os jogadores sob gritos de incentivo como "todo mundo ligado" e "vamos conseguir". Num altar improvisado, velas foram acendidas ao lado de várias imagens de santos -entre elas uma Nossa Senhora Aparecida verde. A santa foi escolhida pela torcida do Palmeiras para proteger o time.
Na noite do sábado, Dodô e Lopes foram os últimos a subir para os quartos, pouco depois das 23h -ficaram conversando com o preparador físico.
Itamar foi o primeiro a acordar e o único, além de Culpi, a tomar café da manhã. A maioria acordou depois das 11h.
Ao meio-dia, o time almoçou filé de peixe à milanesa, frango, creme de palmito, arroz e macarrão. Descansaram por instantes, ouviram a preleção e foram ao estádio.
A delegação palmeirense chegou ao Barradão, às 14h45, uma hora e 15 minutos antes do início da partida, num ônibus da viação Águia Branca. O estádio, que não reunia ainda nem 500 torcedores, era um mar de tranquilidade, exceto por um detalhe: o placar eletrônico marcava Vitória 4 x 0 Palmeiras. Em campo, um time de garotos vestidos de vermelho e preto dominava outro com camisas verde e branco. Foi 10 a 0.
Quando o Palmeiras entrou em campo, às 16h (com um sol de 15h, do horário de verão), o calor era forte -por volta de 30C.
A tranquilidade que emanava do Palmeiras em Salvador até a tragédia do rebaixamento era tanta que o time caiu quase sozinho. Ao desembarcar na cidade, foi recepcionado por apenas seis torcedores. No Barradão, não havia mais que 300 pessoas apoiando.
Até a Mancha Alviverde, maior torcida organizada do clube, que nos últimos anos se acostumou a seguir o Palmeiras onde quer que ele fosse, praticamente sumiu.
Somente dois torcedores da Mancha em SP foram à Bahia. Com seu próprio dinheiro, Luciano de Melo Luizi, 23, e Carlos Gustavo Vieira, 21, compraram só o trecho de ida da mais barata passagem aérea, da companhia BRA. Pagaram R$ 320.
Chegaram às 10h15 de ontem a Salvador, mas não sabiam quando nem como voltariam. "Mais tarde vamos passar no hotel do Palmeiras e ver se a diretoria consegue resolver nosso problema", disse Luizi antes do jogo. Até as 22h, eles tentavam, em vão, conseguir a ajuda de algum dirigente.
Receberam dez ingressos da diretoria do clube pouco após o desembarque. Venderam cinco, arrecadando R$ 50 -uma garantia para o caso de não terem ajuda. De uma ou outra forma, estavam conformados de voltar de ônibus.
Apesar de o time ter ficado quase órfão no seu momento mais crítico, Levir Culpi só era elogios para os torcedores.
"Não podemos esperar mais nada dessa torcida. Foram além dos limites normais. Não lembro ter assumido o time num momento tão ruim e ter tido tanto apoio. No São Paulo, eu andava na ponta da tabela e todo dia era criticado."
Ontem, a pequena torcida calou e chorou no Barradão. No final do jogo, ouviu a do Vitória cantar: "Ão, ão, ão, segunda divisão".
César debulhou-se em lágrimas. Zinho levou as mãos à cabeça. O sol ainda iluminava Salvador, mas no céu já era possível avistar uma enorme lua cheia. (FÁBIO VICTOR)


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