São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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COPA 2006

Tão questionado em 1970 quanto o Fenômeno agora, o Rei perdeu condição de intocável antes de brilhar na conquista do tri e se consolidar como deus da bola

RONALDO
em dias de
PELÉ

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

Ronaldo, o Fenômeno, deveria dar ouvidos a Pelé, o Rei do Futebol. Quando comenta a má fase do artilheiro brasileiro às vésperas do Mundial, o maior jogador da história do futebol sabe exatamente do que está falando: pois ele mesmo, o intocável, foi duramente questionado poucos dias antes do início da Copa do México, em 1970 - aquela em que Pelé viria a consolidar a sua condição inquestionável de deus da bola.
Havia um clima generalizado de desconfiança em relação a Pelé naquela época, o que, visto em retrospectiva, soa como algo difícil de acreditar. Afinal, o mito criado em torno do craque não combina com vaias e críticas. No entanto elas foram abundantes, e muitos naquele tempo questionavam se a carreira do Rei estava no fim, mesma indagação que hoje é feita em relação a Ronaldo.
Em 1970, Pelé, assim como Ronaldo, chegara aos 29 anos cercado de imensa badalação. No ano anterior, ele rompera a marca dos mil gols, uma ocasião explorada até hoje como símbolo de sua superioridade nos gramados -e que inspira a patética busca de Romário por glória semelhante.
Pelé foi condecorado pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, acabou virando selo comemorativo e discursou em favor das "criancinhas pobres".
Quando a seleção brasileira desembarcou no México, em maio, para sua preparação final antes da Copa do Mundo, os mexicanos que recepcionaram a equipe no aeroporto gritavam o protocolar "Viva Brasil!", mas passaram a gritar "Viva Pelé" assim que avistaram o craque.
Dias depois, antes de um amistoso contra um combinado local de Guadalajara, cartazes espalhados pela cidade anunciavam a partida dizendo: "Hoy no trabajamos. Vamos a ver Pelé". Ou seja, era Pelé, e não a seleção brasileira, quem realmente importava.
Sua situação no Brasil, por outro lado, não era confortável. Ele vinha jogando mal havia algum tempo, e a hora dessa verdade chegou quando João Saldanha, então o treinador da seleção, resolveu barrá-lo de um amistoso contra o Chile, programado para março de 1970. "Você não anda bem ultimamente", disse Saldanha a Pelé, segundo relato do próprio treinador. "Se a fase não é boa, é preciso esperar. Por isso você sai nesse jogo."
A má fase de Pelé era quase um consenso, inclusive entre os inimigos de Saldanha, treinadores que haviam criticado sua escolha como técnico e que eram vistos pela imprensa como candidatos a sua vaga em caso de demissão.
Flávio Costa, treinador do Brasil na trágica Copa do Mundo de 1950, defendeu que Pelé deveria ir para o banco. O próprio Zagallo, que viria a substituir Saldanha, declarou: "Pelé, no momento, é nocivo à seleção".
Alguns meses antes da Copa, Pelé renovara seu contrato com o Santos por 840 mil cruzeiros novos, ou cerca de R$ 715 mil em valores atualizados, por dois anos. Era tanto dinheiro, para os padrões da época, que o jornal "Última Hora", em charge publicada no dia 18 de abril de 1970, mostrou Pelé sentado sobre um grande saco de dinheiro e pedindo ajuda "às criancinhas".
O dinheiro e o glamour que cercavam o craque eram vistos, aqui e ali, como responsáveis por seu desempenho irregular. Circulavam rumores de que Pelé estava tomando remédio para dormir devido à série de compromissos assumidos fora de campo. A boataria, nunca confirmada, foi suficiente para que a Assembléia Legislativa de Pernambuco desistisse de condecorar Pelé, às vésperas da Copa, para não premiar um "viciado em narcóticos", conforme relato de um jornal local.
O estado físico de Pelé, como hoje acontece com Ronaldo, era um assunto recorrente antes da disputa do Mundial. Em declaração depois de ter sido demitido, Saldanha afirmou que "os homens da comissão técnica [da seleção] e da CBD" sabiam que Pelé não estava em condições de disputar a Copa. "Para mim, Pelé não seria titular da seleção brasileira, apesar de sabermos que ele é um gênio. Pode jogar boas partidas, mas não está em boas condições físicas", afirmou Saldanha em março de 1970.
Ainda como técnico da seleção, Saldanha afirmou que Pelé era míope, declaração que passaria injustamente à história como a prova de que o treinador, antes bestial, tornara-se uma besta, o que justificaria a sua demissão.
O próprio Pelé, porém, admitiu o problema, embora dissesse que isso não o atrapalhava. O episódio simbolizou a rota de colisão entre os dois, mas a verdade é que a avaliação de Saldanha sobre as condições de Pelé não era sem fundamento. No jogo que custou a cabeça do técnico, um medíocre empate em 1 a 1 com o Bangu, no Rio, em 14 de março de 1970, Pelé voltou a jogar mal e foi vaiado.
Na atribuição de notas aos jogadores feita pelo "Última Hora", o jornal foi categórico sobre o craque: "Péssimo".
Um mês depois, o mesmo jornal indagava se Pelé deveria parar de jogar: "A ascensão e queda de um ídolo é um fenômeno bastante conhecido. Pelé, o ídolo que todos pensavam que ia ser eterno, está sentindo nos comentários desfavoráveis da imprensa e nas vaias e decepções da torcida, que sua imagem de gênio já não tem o mesmo brilho, ou melhor, em cada jogada desperdiçada ou infeliz, ela não se mostra tão nítida como no começo das eliminatórias.
Uma pergunta, entretanto, fica pairando entre as críticas: como estará se sentindo o maior jogador do mundo (...) enquanto disfarça, com sorrisos tranqüilos e respostas ponderadas, o peso da vaia de seu torcedor mais fiel?".
Ao contrário de Ronaldo, Pelé não se queixou da "falta de carinho" da torcida. E culpou a imprensa: "Infelizmente, nem a torcida nem a crônica esportiva entendem de futebol e estão sempre dispostas a descobrir falhas e motivos para a derrota ou o empate. O torcedor acredita na imprensa e vai ao campo preparado para ver goleadas, e, se isso não acontece, ele vaia, é claro. Isso não me afeta, porque sinto que estão influenciados pelos jornais".
Ao comentar a possibilidade de ser substituído, Pelé foi olímpico. Referindo-se a si mesmo em terceira pessoa, coisa que se tornaria um hábito, ele disse que não pensava na hipótese de ir para o banco, mas que isso não seria um problema, já que, segundo o craque, "acabou-se a lenda de que todo time era obrigado a jogar em função de Pelé".
Declarações desse tipo soam hoje como pura demagogia, principalmente porque Saldanha não caiu devido à suposta exigência de Médici para que convocasse o atacante Dario, como o folclore da Copa de 70 perpetuou, mas sim, entre outras coisas, porque o técnico barrou Pelé.
O próprio Saldanha, logo após a demissão, admitiu isso. E a imprensa tratou a coisa nesses termos. "Uma coisa é certa: Pelé derrubou Saldanha", afirmou o "Última Hora" de março de 1970. "O técnico sempre demonstrou decisão e autoridade em tudo o que fazia. Mas, quando tentou mexer com o Crioulo, faltou-lhe o apoio necessário para continuar."
Muitos dirão que a coragem que sobrou ao "João Sem Medo" para barrar Pelé falta a Parreira para barrar Ronaldo. É possível, mas é importante lembrar que Saldanha foi demitido da seleção logo depois de sua decisão sobre Pelé -quem treinou o time no amistoso contra o Chile foi Zagallo. Pelé provou-se intocável, e talvez Ronaldo também o seja, mas não pelas mesmas razões.
Diga-se, em favor de Ronaldo, que Pelé se recuperou e disputou uma Copa do Mundo deslumbrante, e a mesma expectativa cerca hoje o atacante do Real Madrid. Mas, sejamos francos, as comparações acabam aqui: Ronaldo não é Pelé.


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