São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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OLIMPÍADA

Oswaldo Domingues, 89, que correu os 100 m em Berlim-36, é reconhecido pelo COB depois de sumir de registros

Após 70 anos, atleta recupera 10 segundos

MÁRVIO DOS ANJOS
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Brigas, desorganização e improvisos de cartolas legaram a Oswaldo Domingues, 89, pouco mais de dez segundos de carreira olímpica -que se alongaram por 70 anos de esquecimento público por parte do Comitê Olímpico Brasileiro.
O velocista de Berlim-1936 descobriu no ano passado que sua passagem pelo estádio Olímpico -palco da final da Copa-2006- não constava dos anais do COB quando a entidade lançou o livro "Sonho e Conquista", que lista todos os brasileiros nas Olimpíadas.
"Quando soube do livro, disse ao meu amigo [Carlos] Reinaldo Souto [presidente da Federação de Vôlei do Rio] que queria ter uma cópia. Recebi e notei que não estava lá", contou à Folha em seu apartamento em Ipanema, ao lado da mulher, Sônia, seu único casamento. O casal não tem filhos.
Aí, é preciso voltar ao tempo em que Oswaldo tinha 19 anos e corria os 100 m e os 200 m. Órfão de pai aos dois anos, era quarto de seis irmãos. Dois deles, Moacyr e Gilberto, eram seu apoio, enquanto sua mãe era descrente da carreira de atleta. "Quando ela soube que eu ia a Berlim, disse: "E ainda vão pagar sua passagem?!'"
Em 1936, o futebol se profissionalizou, e seus clubes se filiaram à CBD (Confederação Brasileira de Desportos, depois CBF); os amadores ficaram com o COB.
Atleta do Vasco, Oswaldo acabou formando a delegação de atletismo da CBD, que viajou de navio e trem com escalas em Lisboa, Cherbourg e Paris. Mas, na chegada a Berlim, o racha entre as entidades deixou a Vila Olímpica mais distante para os da CBD.
"Como a equipe do COB tinha sido recebida oficialmente antes, os organizadores não entenderam por que teriam que receber outra delegação brasileira", afirma Oswaldo. "Acabamos impedidos de entrar e ficamos hospedados em casas de famílias alemãs no bairro de Schmorgendorf."
Com uma memória lúcida e cheia de detalhes, conta que, da chegada ao início dos Jogos, cerca de duas semanas se passaram sem que os atletas da CBD tivessem acesso às dependências olímpicas -ou seja, quase nenhum treino.
"Viramos turistas. Conseguimos fazer um único treino num clube de bairro, numa pista precária. Mas, no dia da abertura dos Jogos, a situação não tinha sido contornada, e nós acabamos não participando do desfile."

"Acorda e põe teu uniforme"
De "folga", os atletas da CBD não viram a opulenta festa de abertura promovida pelo governo de Adolf Hitler, cuja propaganda nazista usava os Jogos como um marco da reconstrução da Alemanha, derrotada na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Em vez disso, certos de que estavam fora da Olimpíada, os jovens passaram a noite em uma cervejaria alemã e saíram de lá por volta das 3h da manhã. Às 6h, Oswaldo foi acordado pelo técnico, o húngaro Eugênio Rappaport: "Acorda e põe teu uniforme. Temos que fazer seu passaporte olímpico, porque você vai correr a eliminatória nesta manhã".
Da cama à raia da nona eliminatória, foram quatro horas. Seu nome não estava no programa. "Me anunciaram como substituto de um atleta de um país, não lembro qual, nos alto-falantes do estádio Olímpico, que tinha 100 mil pessoas todos os dias."
Outro vexame ainda estava reservado. "Me apresentei com o uniforme azul da CBD, e o árbitro me disse que eu estava errado. Aí o [Antônio] Lyra, um arremessador de peso muito forte, estava passando, e eu pedi a camisa dele emprestada. Imagina como ficou folgada em mim", diz. Por fim, terminou em quinto, saindo na primeira eliminatória.
"Fiquei muito frustrado", conta Oswaldo. "A gente treinou, enfrentou dias de viagem para chegar lá e não ter a mínima condição. Depois, a CBD determinou que o pessoal do atletismo não ia mais disputar, já que não teríamos resultados expressivos."
A decisão da CBD o tirou de sua outra especialidade, os 200 m. A ele, restou o papel de espectador.
A frustração fez o jovem atleta se dedicar ainda mais aos estudos para a Escola Militar. Em abril de 1937, tornou-se cadete e se despediu da vida de atleta ao recusar convocação para um Pan-Americano de atletismo em Dallas. "Se fosse, perderia o ano na Escola Militar, depois de ter disputado 90 vagas contra 2.000 candidatos. Tive convicção de que devia parar."
Hoje, Oswaldo é general-de-brigada reformado e tem no currículo a Secretaria da Segurança do Estado do Rio em 1975, época da fusão com a Guanabara.

Reconhecimento do COB
Sua atuação foi reconhecida pelo COB quando escreveu em julho de 2005 ao presidente da entidade, Carlos Arthur Nuzman, detalhando eventos com fotos e xerox do passaporte olímpico, que está em excelente estado.
O COB lhe pediu desculpas em setembro de 2005, garantindo-lhe a correção. Oswaldo, porém, terá que esperar dois anos, pois a segunda edição de "Sonho e Conquista" só virá após Pequim-2008. Ele não tem pressa.
"Na minha idade, eu sou mais um harmonizador; não quero brigas nem discussões. Mas me causava uma situação embaraçosa, já que muitos me ouviram dizer que eu tinha participado da Olimpíada. E, no livro, eu não estava lá."


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