São Paulo, terça-feira, 19 de agosto de 2008

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MADE IN CHINA

Calcanhar de Aquiles

TRAÍDO POR LESÃO NO TENDÃO-DE-AQUILES, LIU XIANG, MAIOR ASTRO DO ESPORTE NO PAÍS, ABANDONA NA PISTA OS 110 M COM BARREIRAS, PROVA QUE O CONSAGROU EM ATENAS E AGORA FAZ A CHINA CHORAR

ADALBERTO LEISTER FILHO
FÁBIO SEIXAS
ENVIADOS ESPECIAIS A PEQUIM

Pequim, 24 de junho, inauguração do Ninho de Pássaro, evento-teste para os Jogos, 45 mil pessoas no estádio com um só objetivo: assistir ao astro Liu Xiang nos 110 m com barreiras.
Ele alinha para a largada, mas a corrida é abortada após alguns metros. O chinês queimara a saída. De propósito, explicaria depois -o atleta que erra a segunda saída é automaticamente eliminado. "Queria sentir a pressão, porque na Olimpíada tudo pode acontecer."
Cena, atitude e frase que soam como uma trágica profecia agora, exatos 56 dias depois.
Porque na madrugada de ontem (no horário brasileiro) Liu alinhou no mesmo Ninho de Pássaro, desta vez com o dobro de gente, desta vez valendo pela Olimpíada de Pequim. Partiu, e a prova foi abortada.
Mas ele não voltou para a segunda largada. Aqueles metros foram o bastante para que Liu sentisse que não dava. Mancando, ele passou pelos colegas e desapareceu pelo túnel. O estádio lamentou em uníssono.
O maior astro do esporte chinês, ouro em Atenas-2004, ex-recordista mundial, motivo de histeria do público, de brilho nos olhos dos patrocinadores e de satisfação do regime, estava fora de uma Olimpíada que, em diversos aspectos, foi forjada para o seu sucesso.
O motivo, uma inflamação no tendão-de-aquiles direito, problema que o incomoda "há seis, sete anos", segundo seu técnico, que exigiu que ele se poupasse neste ano, participando de poucas competições e centrando o foco nos Jogos. A lesão voltou a incomodar no sábado e causou "dor insuportável" no aquecimento da eliminatória.
"Apesar da dor, ele se preparou 100%. Então, decidiu competir, após passar por tratamento médico. Há diferença [no desempenho] quando há dor, algumas ações não são fáceis. Mas ele estava muito determinado a competir", disse Feng Shouyong, técnico-chefe da equipe chinesa de atletismo.
"Quando foi para o estádio, ele mostrou heroísmo e força. Ele queria competir de qualquer maneira. Ninguém pode imaginar a dor que ele sentia. Deixa eu dizer de novo: Liu Xiang não desistiria ao menos que a dor fosse insuportável", completou o dirigente.
Na sala de entrevistas do Ninho de Pássaro, jornalistas chineses choravam. E Sun Haiping, o técnico que descobriu Liu quando o atleta tinha 12 anos e que o acompanha desde então, acabou-se em lágrimas.
"Liu Xiang tem um osso calcâneo diferente em relação aos outros. É mais saliente, o que torna seu amortecimento mais difícil. Ele já sofria com isso em Atenas e, mesmo assim, continuou treinando e competindo por anos", disse, entre pausas, mãos na cabeça, lágrimas.
"No sábado, a dor voltou entre um treino intenso e o descanso. Ficamos preocupados. É uma lesão acumulada há seis ou sete anos e que se desenvolveu muito. Havia uma grande pressão e expectativa do povo chinês sobre sua performance. Mas a dor era muito forte, senão ele não teria desistido."
Segundo Sun, o problema foi o mesmo que o tirou de um meeting em Nova York, em maio -evento em que o jamaicano Usain Bolt bateu o recorde dos 100 m pela primeira vez.
Nos últimos dias, os chineses cogitaram tirá-lo da prova, mas decidiram arriscar. Não deu.
"Ele sentiu a lesão quando fazia aquecimento na pista ao lado do estádio. Três médicos estavam lá, ajudando-o a minimizar a dor. Mas o que quer que fosse feito era inútil", disse Sun.
Na China, o lamento de 90 mil pessoas no Ninho foi ampliado por milhões e milhões.
"O abandono de Liu é um teste para os chineses. Mas ouvi algumas vaias, o que me traz preocupações sobre a capacidade mental dos torcedores", escreveu o comentarista Yang Huan Jun no site China.com.
"Se você realmente gosta de Liu, deve perdoá-lo", defendeu Tao Duan Fang, no portal Sina.
"Liu tentou o melhor. O que quer que ocorra, vamos apoiá-lo. Ele ainda é um herói em nossos corações", disse Li Chengpeng na TV estatal CCTV, que ontem repetiu durante todo o dia as imagens do drama.
Liu passará as próximas semanas em tratamento intensivo e não competirá até o fim da temporada. Só deve voltar às principais provas em 2009.
A China também passará os próximos dias se recuperando, buscando alguém que preencha o espaço deixado pelo ouro que nunca virá. Todos agora devidamente calejados com a experiência buscada pelo ídolo em sua única vitória no Ninho.
O tal "tudo pode acontecer".

354 MIL
dólares (cerca de R$ 581 mil) é o valor da doação que Liu Xiang fez para as vítimas que sobreviveram ao terremoto da Província de Sichuan, ocorrido em maio deste ano

12 ANOS
foi a idade com que Liu Xiang foi recrutado para treinar salto em altura; aos 15, após um exame nos ossos, ele foi direcionado para os 110 m com barreiras

13,5 MILHÕES
de dólares, o equivalente a mais de R$ 22 milhões, é o valor do seguro das pernas do atleta chinês, campeão olímpico dos 110 m com barreiras


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