São Paulo, sábado, 20 de setembro de 2008

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JOSÉ GERALDO COUTO

Fé na riqueza


Atletas de Cristo brasileiros estão atualmente na linha de frente do marketing evangélico pelo mundo afora

LEMBRA DO Bordon , zagueiro que foi do São Paulo e hoje é capitão do Schalke, na Alemanha? Pois então. O Bordon é o principal personagem de uma longa reportagem da revista alemã "Der Spiegel" que eu li estes dias no UOL.
O assunto da matéria é o verdadeiro trabalho missionário que os jogadores evangélicos brasileiros estão realizando na Europa.
Bordon e Lúcio na Alemanha, Gilberto na Inglaterra, Edmilson na Espanha, Cris na França, Luisão em Portugal, Kaká na Itália, entre dezenas de outros, estão levando a seus colegas e fãs a palavra das igrejas pentecostais carismáticas, que pregam uma observância estrita da Bíblia e uma relação "pessoal" do indivíduo com Deus.
Até aí tudo bem. Cada um acredita no que quer. O problema é quando essa pregação assume um caráter coercitivo, discriminando, quando não hostilizando, os que se recusam a aderir.
A "Der Spiegel" cita dois casos envolvendo Bordon. Um deles foi o bate-boca do zagueiro com o goleiro Frank Rost, hoje no Hamburgo, que se recusou a orar com os companheiros. Rost acusa Bordon de ter dito ao treinador e aos dirigentes do Schalke que o colega estava possuído pelo demônio.
Outro que teve problemas com Bordon foi o atacante brasileiro Ailton. O zagueiro disse que ele não tinha "um relacionamento pessoal com Deus" e que isso abria caminho para o diabo entrar no time.
A reportagem da revista identifica uma mudança de foco dos evangélicos: da ênfase na conversão dos pobres, eles teriam passado para a pregação de que a riqueza e o consumo são sinais da verdadeira fé.
Dentro dessa visão, a prosperidade material seria uma recompensa ao crente por levar uma vida temente a Deus.
Os fiéis devem se tornar ricos para serem cristãos melhores. Quanto mais dinheiro eles tiverem, mais doarão à igreja, pois esta fica com 10% dos rendimentos de cada um. Calcula-se, por exemplo, que Kaká manda para a Renascer, no Brasil, mais de US$ 1 milhão por ano.
É uma versão caricatural da relação que o sociólogo Max Weber via entre a ética do protestantismo (sobretudo calvinista) e o espírito capitalista de acumulação.
"Essa fé na riqueza é viciante", declara Reinhardt Hempelmann à "Der Spiegel". Ele é diretor do Centro Protestante para Assuntos Religiosos e Ideológicos, de Berlim.
Como outros atletas entrevistados, Bordon diz que não tem idéia do que é feito com seu dinheiro, mas imagina que seja aplicado em obras assistenciais. E se justifica: "Confiar não faz parte da fé?".
Do mesmo modo, Kaká, quando foram presos os líderes de sua igreja, o casal Hernandes, disse ter uma confiança cega neles. Repito: cada um crê no que quer. Pensando bem, só um relacionamento direto com o Espírito Santo pode explicar como Bordon, que era um grosso no São Paulo, virou craque na Alemanha.
E mais não digo, porque, na última vez que me meti a criticar o apoio de Kaká a seus líderes religiosos, recebi mensagens agressivas vindas de todo o país, curiosamente todas escritas quase com as mesmas palavras.
Só espero que desta vez não queiram me submeter a um exorcismo.

jgcouto@uol.com.br



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