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Pênalti
Vinte anos após falhar em lance decisivo contra a França e se despedir oficialmente da seleção brasileira, Zico lança-se em ataque contra a Fifa
FÁBIO VICTOR
ENVIADO ESPECIAL A BONN
O joelho que atrapalhava a vida de Zico naquele 21 de junho
de 1986 ainda é capaz de atormentá-lo. Nos dias em que trabalha forte com bola no treino
do Japão, como ontem, tem que
passar depois no vestiário para
sessões de gelo e fisioterapia.
Há exatos 20 anos, Zico fez o
último jogo oficial pela seleção.
Um dos grandes craques da
história, talvez o maior do Brasil nos anos 80, naquela tarde
no estádio Jalisco, em Guadalajara, ele saiu do banco, para onde só fora porque se recuperava
dos problemas no maldito joelho, como arma de Telê Santana nas quartas-de-final da Copa do México contra a França
de Platini, Tigana e Girese.
O jogo estava 1 a 1. Zico estava
frio. Mesmo assim, logo de cara
deu um passe para Branco, que
foi derrubado na área. Zico bateu o pênalti, Bats pegou. Em 1
a 1 terminou. Prorrogação sem
gols. Na disputa de pênaltis, Zico fez o dele, mas não adiantou.
Sócrates e Júlio César erraram,
e a seleção foi eliminada.
Na fogueira da Grande Inquisição Brasileira das Copas, Zico
também já foi queimado. Se o
culpado por 50 foi Barbosa e o
por 82, Cerezo, o júri desse tribunal abstrato do imaginário
coletivo nacional o condenou
como o responsável por 86.
As queimaduras engrossaram o couro do "Galinho de
Quintino". Ele ganhou mundo,
virou o ídolo maior do futebol
japonês e hoje é o técnico do
país na Copa da Alemanha. Mas
também foi integrante do governo [Collor, informação que
procura omitir], idealizou uma
lei com seu nome, foi dirigente,
montou seu próprio clube.
De um meia refinado e pouco
dado a polêmicas, Zico, na vivência conturbada dessas duas
décadas, transformou-se num
dos mais credenciados críticos
do establishment do futebol.
Primeiro do brasileiro, à
frente a CBF, que já o contratou
(coordenador da seleção na
França-98), mas de quem hoje
quer distância transatlântica.
E, o mundo agora começa a
perceber, transformou-se também numa implacável língua
ferina a azucrinar o império da
Fifa, papel que costumava ser
desempenhado por Maradona,
colega de geração e genialidade.
No treino de ontem em
Bonn, Zico liderou exercícios
intermináveis de finalizações
com seus jogadores, que ainda
não marcaram gols nesta Copa
e cujas chances de classificação
às oitavas-de-final, mínimas,
dependem de que balancem as
redes brasileiras amanhã. Cuidou do joelho e depois falou.
Aumentou vários tons no volume das críticas que tem feito
à Fifa desde a estréia japonesa.
A metralhadora começou a
disparar com a repetição das
queixas sobre os horários dos
jogos iniciais do Japão, ambos
às 15h locais, o que no verão alemão tem sido calor saariano.
"Eles [a Fifa] vão me advertir
por quê? Porque disse que tem
ventilador no banco de reservas e que o juiz parou para beber água? Por quê [iriam adverti-lo]? É ditadura?", questiona.
A verve envereda pela arbitragem. "Aí vem um senhor cidadão da Fifa [o diretor de comunicação Markus Siegler] e
diz que o juiz errou ao não dar
um pênalti para o Japão [contra a Austrália]. Mas vem a Fifa
e escala um juiz europeu para
apitar um jogo do Japão contra
um europeu [a Croácia]..."
Em seguida sobra para a Coréia do Sul, país que alimenta
rivalidades seculares com os japoneses e com quem dividiram
a organização da última Copa.
"Essas coisas todas acontecem
contra o Japão, mas contra a
Coréia não acontecem." E por
que não acontecem?, questiona
a Folha. "Por que será? Não sei
por que não acontecem. Não
sei", ironiza, piscando o olho.
E logo prossegue no tiroteio
verbal. "A Coréia chegou por
méritos próprios [à semifinal]
na Copa passada, né? Não teve
ajuda nenhuma...", diz, aludindo às denúncias de ajuda da arbitragem aos co-anfitriões.
"É que quem tá ganhando",
continua Zico, "não fala nada,
não reclama. Mas vou falar, não
devo nada a ninguém."
E vem a dinamite. "E tem outras coisas que ninguém fala,
uns papéis que estão obrigando
todas as seleções a assinar..."
Zico é instado a contar do que
trata, mas o faz pela metade.
"Todo mundo está sendo
obrigado a assinar um papel
concordando com umas coisas... Eu não assinei, não vou
assinar. Sou cumpridor dos
meus deveres. Isso é ditadura
pura!", atira, possivelmente na
mais pesada crítica feita à Fifa
por um técnico neste Mundial.
"Mas, o que há nesse papel?",
insiste a Folha. "Não sei, não
lembro bem", despista Zico,
para em seguida contar parcialmente. "Dizem que temos de
nos comprometer com fair play
[jogo limpo]. Que fair play é esse, que toda hora jogador cai na
área fingindo, e todo mundo tá
usando isso como tática?"
Para onde se olhe, a missão
de Zico é ingrata. A Fifa não lhe
dá ouvidos. Em campo, tenta
acertar o pé do seu time. O treino de ontem, acompanhado
pela princesa japonesa Hisako,
foi o primeiro na Copa em que
a equipe treinou só finalizações
-nada mais. "Treinar tática
agora não é mais necessário. O
time precisa é fazer gol."
O Japão depende de uma
matemática complexa para obter uma vaga: tem de vencer o
time de Parreira com pelo menos dois gols de diferença e torcer para que a Croácia bata a
Austrália, mas com um gol a
menos do que os da sua vitória
sobre a seleção brasileira.
Há 20 anos, apesar do joelho,
tudo parecia mais fácil para ele.
Colaborou TALES TORRAGA, da Reportagem Local
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