São Paulo, quarta-feira, 21 de junho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pênalti

Vinte anos após falhar em lance decisivo contra a França e se despedir oficialmente da seleção brasileira, Zico lança-se em ataque contra a Fifa

FÁBIO VICTOR
ENVIADO ESPECIAL A BONN

O joelho que atrapalhava a vida de Zico naquele 21 de junho de 1986 ainda é capaz de atormentá-lo. Nos dias em que trabalha forte com bola no treino do Japão, como ontem, tem que passar depois no vestiário para sessões de gelo e fisioterapia.
Há exatos 20 anos, Zico fez o último jogo oficial pela seleção. Um dos grandes craques da história, talvez o maior do Brasil nos anos 80, naquela tarde no estádio Jalisco, em Guadalajara, ele saiu do banco, para onde só fora porque se recuperava dos problemas no maldito joelho, como arma de Telê Santana nas quartas-de-final da Copa do México contra a França de Platini, Tigana e Girese.
O jogo estava 1 a 1. Zico estava frio. Mesmo assim, logo de cara deu um passe para Branco, que foi derrubado na área. Zico bateu o pênalti, Bats pegou. Em 1 a 1 terminou. Prorrogação sem gols. Na disputa de pênaltis, Zico fez o dele, mas não adiantou.
Sócrates e Júlio César erraram, e a seleção foi eliminada. Na fogueira da Grande Inquisição Brasileira das Copas, Zico também já foi queimado. Se o culpado por 50 foi Barbosa e o por 82, Cerezo, o júri desse tribunal abstrato do imaginário coletivo nacional o condenou como o responsável por 86.
As queimaduras engrossaram o couro do "Galinho de Quintino". Ele ganhou mundo, virou o ídolo maior do futebol japonês e hoje é o técnico do país na Copa da Alemanha. Mas também foi integrante do governo [Collor, informação que procura omitir], idealizou uma lei com seu nome, foi dirigente, montou seu próprio clube.
De um meia refinado e pouco dado a polêmicas, Zico, na vivência conturbada dessas duas décadas, transformou-se num dos mais credenciados críticos do establishment do futebol.
Primeiro do brasileiro, à frente a CBF, que já o contratou (coordenador da seleção na França-98), mas de quem hoje quer distância transatlântica.
E, o mundo agora começa a perceber, transformou-se também numa implacável língua ferina a azucrinar o império da Fifa, papel que costumava ser desempenhado por Maradona, colega de geração e genialidade.
No treino de ontem em Bonn, Zico liderou exercícios intermináveis de finalizações com seus jogadores, que ainda não marcaram gols nesta Copa e cujas chances de classificação às oitavas-de-final, mínimas, dependem de que balancem as redes brasileiras amanhã. Cuidou do joelho e depois falou.
Aumentou vários tons no volume das críticas que tem feito à Fifa desde a estréia japonesa. A metralhadora começou a disparar com a repetição das queixas sobre os horários dos jogos iniciais do Japão, ambos às 15h locais, o que no verão alemão tem sido calor saariano. "Eles [a Fifa] vão me advertir por quê? Porque disse que tem ventilador no banco de reservas e que o juiz parou para beber água? Por quê [iriam adverti-lo]? É ditadura?", questiona.
A verve envereda pela arbitragem. "Aí vem um senhor cidadão da Fifa [o diretor de comunicação Markus Siegler] e diz que o juiz errou ao não dar um pênalti para o Japão [contra a Austrália]. Mas vem a Fifa e escala um juiz europeu para apitar um jogo do Japão contra um europeu [a Croácia]..."
Em seguida sobra para a Coréia do Sul, país que alimenta rivalidades seculares com os japoneses e com quem dividiram a organização da última Copa.
"Essas coisas todas acontecem contra o Japão, mas contra a Coréia não acontecem." E por que não acontecem?, questiona a Folha. "Por que será? Não sei por que não acontecem. Não sei", ironiza, piscando o olho.
E logo prossegue no tiroteio verbal. "A Coréia chegou por méritos próprios [à semifinal] na Copa passada, né? Não teve ajuda nenhuma...", diz, aludindo às denúncias de ajuda da arbitragem aos co-anfitriões.
"É que quem tá ganhando", continua Zico, "não fala nada, não reclama. Mas vou falar, não devo nada a ninguém."
E vem a dinamite. "E tem outras coisas que ninguém fala, uns papéis que estão obrigando todas as seleções a assinar..."
Zico é instado a contar do que trata, mas o faz pela metade.
"Todo mundo está sendo obrigado a assinar um papel concordando com umas coisas... Eu não assinei, não vou assinar. Sou cumpridor dos meus deveres. Isso é ditadura pura!", atira, possivelmente na mais pesada crítica feita à Fifa por um técnico neste Mundial.
"Mas, o que há nesse papel?", insiste a Folha. "Não sei, não lembro bem", despista Zico, para em seguida contar parcialmente. "Dizem que temos de nos comprometer com fair play [jogo limpo]. Que fair play é esse, que toda hora jogador cai na área fingindo, e todo mundo tá usando isso como tática?"
Para onde se olhe, a missão de Zico é ingrata. A Fifa não lhe dá ouvidos. Em campo, tenta acertar o pé do seu time. O treino de ontem, acompanhado pela princesa japonesa Hisako, foi o primeiro na Copa em que a equipe treinou só finalizações -nada mais. "Treinar tática agora não é mais necessário. O time precisa é fazer gol."
O Japão depende de uma matemática complexa para obter uma vaga: tem de vencer o time de Parreira com pelo menos dois gols de diferença e torcer para que a Croácia bata a Austrália, mas com um gol a menos do que os da sua vitória sobre a seleção brasileira.
Há 20 anos, apesar do joelho, tudo parecia mais fácil para ele.


Colaborou TALES TORRAGA, da Reportagem Local

Texto Anterior: Gana: Pela copa, país paralisa mineradora
Próximo Texto: Clóvis Rossi: Ar estrangeiro

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.