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TOM PHILLIPS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Apesar dos pesares
O problema não é o que acontece no Maracanã ou no Engenhão, mas o que acontece a alguns passos de seus portões
M
AIS UM prato de
arroz com feijão
estava chegando
ao fim quando Theo, 9, filho de minha namorada,
voltou-se para mim e disse:
"Tom, por que você só escreve sobre coisa triste?".
Quando a Folha me convidou para descrever minha visão do Rio, por ocasião do Pan, eu imediatamente pensei em Theo,
um menino comum do
Rio, obcecado pelo Botafogo, que como muitos
gostaria de saber por que
os jornalistas gringos parecem dedicar seu tempo
aos aspectos miseráveis
da Cidade Maravilhosa.
Basta folhear meu diário para ter uma explicação parcial. A vida como
jornalista estrangeiro
consiste em alternar o que
a cidade tem de melhor e o
que tem de muito, muito
pior. É uma excursão tanto à beleza quanto ao caos
da cidade mutante.
Recentemente, o melhor significa jantar com
Plínio Fróes, dono do clube de samba Rio Scenarium, acompanhado pela
hipnótica trilha sonora
dos mais talentosos jovens do Brasil. Também
significa ir ao churrasco
de uma amiga em Santa
Teresa e descobrir Yamandú Costa dedilhando
seu violão ao meu lado.
Significa passar uma
noite batendo papo com
diplomatas e jornalistas
na residência do cônsul
britânico no Rio, em um
canto arborizado e elegante da zona sul. Também
significa ver o trabalho de
alguns cirurgiões de qualidade mundial, que conseguiram restaurar um dedo
da minha namorada depois de um acidente doméstico. Em sua melhor
forma, o Rio é inegavelmente maravilhoso.
Infelizmente, minhas
experiências não param
por aí. Folheando meus
cadernos, não é difícil encontrar o outro lado da cidade dividida. Estão lá a
tarde que passei contando
cadáveres no Hospital Getúlio Vargas, após confrontos no Alemão; as
conversas no meio da noite com adolescentes armados de granadas que
me explicavam o que fariam caso a polícia se
aproximasse das favelas; e
havia parentes inconsoláveis dos jovens policiais
militares abatidos a tiros.
Quando me perguntam
o que penso, meu caderno
diz quase tudo. O Pan será
bom para a Cidade Maravilhosa, lugar a que todos
amamos apesar dos pesares? Sem dúvida. Os novos
e espetaculares estádios,
as ruas recentemente pavimentadas beneficiam o
Rio? Certamente. Será
que é possível, como disse
o presidente Lula a um colega brasileiro, "organizar
o melhor Pan de todos os
tempos"? Não duvido. O
problema, porém, não é o
que se passa sob os refletores de última geração do
Maracanã ou no gramado
do Engenhão, mas o que
acontece a alguns passos
de seus portões.
TOM PHILLIPS, 25, é correspondente do inglês "Guardian" e está no Rio há dois anos
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