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SONINHA
A história do mundo
O futebol sempre foi um reflexo das transformações na sociedade -quando não ajudou a desencadeá-las
É SEMPRE BOM ter um livro na
bolsa para evitar aborrecimentos em algumas situações (salas de espera, filas de banco)
ou desfrutar de prazeres solitários
(como uma refeição sem companhia). (Ninguém pensou em outra
coisa, pensou?)
Nas últimas semanas, carreguei
um volume mais pesado do que o recomendável: um tratado sobre futebol com quase 400 páginas chamado "A Dança dos Deuses", escrito pelo professor Hilário Franco Júnior,
do Departamento de História da
USP. Tive a sorte de ser convidada
para resenhá-lo no próximo número da edição brasileira do "Le Monde Diplomatique". Foi um prazer.
Entre centenas de outros nomes,
foram escalados para a obra: Di Stéfano, Puskas, Franco, Mussolini,
Freud, Levi-Strauss, Friedenreich,
Kierkgaard, Leônidas, Cantona,
Hobsbawn, Rinus Michels, Mario
Filho... Uns ofereceram "insights"
sobre o tema; outros interferiram
nos rumos do esporte a seu modo,
com belos toques ou jogadas brutas.
É fascinante ler como a antropologia, a filosofia, a psicologia, a sociologia, a lingüística, a história social, política e econômica do século 20 entendem e tentam explicar a rivalidade entre torcidas, a euforia em uma
vitória, a fúria posterior a uma derrota (ou à conquista de um título!) e
até mesmo a regra do impedimento.
Às vezes esquecemos que a criatura -o futebol- não nasceu pronta.
Que tal saber que o travessão foi inventado em 1865, o tiro de meta em
1869 e o escanteio em 1872? Mais interessante é entender o contexto de
cada criação. Aprender que a disputa por popularidade com o rúgbi foi
crucial para se estabelecer que ao
menos um jogador poderia usar as
mãos -o goleiro foi "inventado" em
1871. As áreas, pequena e grande, só
foram demarcadas em 1902...
O amadorismo era considerado o
"ideal"; durante muito tempo, procurou-se manter o futebol não "maculado" pelo profissionalismo
-que, conforme declaração do presidente do Flamengo em 1932, "avilta o homem". Mas não foi possível
conter a disseminação de várias formas de remuneração para que os jogadores -especialmente, claro, os
mais pobres, como os operários-
pudessem se dedicar ao novo esporte. O que não incluía o reconhecimento de seus direitos trabalhistas:
eles eram "obrigados a excursionar
durante as férias e a jogar mesmo
lesionados".
Leônidas da Silva, multado várias
vezes por desobedecer a tais determinações, lembrava que "jogador
não é escravo". Foi chamado de rebelde e mercenário. Também não
era bem-vista a prática de se contratar jogadores de outra cidade...
Entender o modo como "as leis inglesas são, em grande parte, originárias do costume" ajuda a compreender por que o International Board,
desprovido da "febre legisladora da
cultura jurídica latina", reluta tanto
antes de aceitar mudanças. E analisar o caráter de "clã" inerente ao futebol explica por que não adianta
pedir racionalidade ao torcedor que
espera a renúncia do presidente
septuagenário do seu clube porque
torceu para outro até os 9 anos.
Enfim, não dá para compreender
todos os significados do futebol sem
conhecer bem a história dos últimos
150 anos. Nem o último século e
meio sem compreender o futebol.
soninha.folha@uol.com.br
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