São Paulo, segunda-feira, 22 de março de 2004

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JACQUES ROGGE

Presidente do Comitê Olímpico Internacional diz que COB é um dos raros comitês com ajuda estatal

Brasil é privilegiado por ter dinheiro público, afirma COI

ROBERTO DIAS
EDITOR-ASSISTENTE DE ESPORTE

O COB (Comitê Olímpico Brasileiro) é "privilegiado" por ter no dinheiro público sua principal fonte de financiamento. O adjetivo é do presidente do COI (Comitê Olímpico Internacional), o belga Jacques Rogge.
"Talvez apenas 10% dos comitês olímpicos nacionais do mundo tenham apoio do governo", diz.
Só no ano passado, o aporte ao COB foi de R$ 47,5 milhões, repassados por determinação da Lei Piva, a grande novidade do esporte brasileiro em relação à última Olimpíada -desde 2001, o comitê e sua versão paraolímpica ganham 2% da arrecadação das loterias federais. Rogge, que aprova a lei, aponta que muitos países não têm condições de fazer tal investimento no esporte.
O resultado dessa aposta poderá ser conferido na Olimpíada de Atenas, que começa em 144 dias. Na semana passada, em entrevista por telefone, Rogge, 61, explicou que esses Jogos serão marcados pelo maior rigor contra o doping e no esquema de segurança.
 

Folha - O sr. já disse acreditar que o rigor no antidoping é que fez o número de casos crescer. Assim, faz sentido esperar grande aumento no número de atletas com problemas em Atenas?
Jacques Rogge -
É ainda muito cedo para dizer. Mas eu não ficaria de maneira nenhuma preocupado por isso. Quanto mais atletas pegarmos, melhor é. Isso significa que nossos métodos estão ficando cada vez melhores. Nós aumentamos o número de testes. Provavelmente vamos introduzir novos exames para drogas que hoje ainda não são detectáveis. Se tivermos muitos casos, é um bom sinal, mostra que o sistema funciona bem. Veja o que ocorreu em Salt Lake City [a última Olimpíada de inverno, em 2002]. Nós tivemos sete casos positivos. Nos 18 Jogos anteriores, nós tivemos apenas cinco casos positivos. Se me disserem que é um mau sinal, eu digo: "Não, é um bom sinal".

Folha - Quais serão esses novos testes?
Rogge -
Não vou dizer a você, porque isso prejudicaria o efeito deles. Queremos manter em segredo, para que os atletas não se sintam tentados a se dopar.

Folha - O sr. espera realizar exames de hGH [hormônio de crescimento] em Atenas?
Rogge -
Sim, esperamos.

Folha - Sendo esses testes totalmente novos, serão confiáveis?
Rogge -
Sim, só vamos usá-los se forem totalmente validados pela comunidade científica.

Folha - O que está sendo feito em relação à segurança dos Jogos depois do que ocorreu em Madri?
Rogge -
A segurança é sempre calculada de maneira a minimizar qualquer risco. Está claro que um cenário como o das bombas de Madri é um dos que têm sido considerados pelas forças de segurança. Há hipóteses em que esses cenários estão incluídos.

Folha - Mas vai mudar algo?
Rogge -
Escute: quanto menos falarmos sobre segurança, melhor. Posso dizer que as medidas de segurança são máximas, mas não vou entrar em descrições sobre o que vai ser feito e o que não vai ser feito, porque, se todo mundo souber o que a segurança está fazendo, não seria mais uma medida de segurança. Ela seria fragilizada.

Folha - Um turista passará por mais inspeções do que nos Jogos passados?
Rogge -
Sim.

Folha - O sr. não teme que Atenas se pareça mais com um cenário de guerra do que com uma sede olímpica?
Rogge -
Se você vai para um aeroporto, você é inspecionado. Você tem algum tempo para tirar seus sapatos e seu cinto. A bagagem é checada, rechecada e checada pela terceira vez. Grandes filas. Muitas empresas aéreas têm guardas a bordo. Vivemos numa era diferente desde o 11 de Setembro. As pessoas estão se adaptando a isso. Posso dizer que os Jogos não se parecerão com um campo militar. Mas ao mesmo tempo digo que as forças de segurança estarão presentes, prontas para intervir em qualquer lugar a qualquer momento.
Eu fui a muitos Jogos. Estava em Munique em 72 [quando atletas israelenses foram mortos por terroristas] e estava também em 76 [em Montréal]. Posso dizer a você que os Jogos de 76 foram os de segurança mais reforçada que eu vi na minha vida. Mas aquilo foi totalmente aceito tanto pelos atletas quanto pelo público, porque era necessário. Desde então, a presença das forças de segurança é algo de interesse das pessoas. Nunca acho ruim que haja muita segurança nos aeroportos. A segurança é para nós.

Folha - O COI não tem fonte pública de dinheiro. Mas muitas outras partes do Movimento Olímpico têm. É possível haver algum dia um esporte 100% profissional?
Rogge -
O que você quer dizer com esporte profissional?

Folha - Atletas e confederações pagos por seus próprios ganhos com o esporte, sem dinheiro público, apenas privado. Por exemplo: o Comitê Olímpico Brasileiro tem no dinheiro público sua principal fonte de financiamento. Gustavo Kuerten, o principal atleta olímpico do país, tem um banco público como seu maior patrocinador. O que fazer para que haja mais dinheiro privado no esporte?
Rogge -
Acho que você está influenciado pelo aspecto brasileiro. Porque, nos esportes em geral, 90% do dinheiro vem do setor privado. Se você olhar para os comitês olímpicos nacionais, pouquíssimos recebem apoio do governo. Talvez apenas 10% dos comitês olímpicos nacionais do mundo tenham apoio do governo. Noventa por cento vivem do apoio do Comitê Olímpico Internacional, com o que chamamos de Solidariedade Olímpica, e os recursos que eles próprios conseguem. Em relação aos comitês organizadores [de Jogos Olímpicos], eles levantam 85% de seus dinheiro por meio de patrocinadores e de direitos de televisão.
Então, a maior parte dos comitês olímpicos nacionais, ao contrário do do Brasil, que é muito privilegiado nesse ponto, não pode depender de apoio do governo. Na maior parte da África, não há governo que tenha dinheiro suficiente para dar ao esporte.

Folha - Por que o caso brasileiro é diferente dos outros?
Rogge -
Por uma decisão do seu governo, e eu a aplaudo, porque foi uma decisão muito boa.

Folha - Os documentos que o Rio mandou ao COI dizem que a candidatura a 2012 é inteira bancada por dinheiro público. Nova York tem apenas fontes privadas. Londres, Paris, Madri e Moscou têm financiamento misto. Por que o Brasil é tão diferente?
Rogge -
Você deveria perguntar aos brasileiros. Eu não sei. Só sei que há a diferença. A razão, eu não posso explicar.

Folha - Há uma discussão no Brasil sobre permitir ou não a existência de bingos. Qual sua opinião sobre usar jogos de azar como fonte de financiamento ao esporte?
Rogge -
Não estou em posição de responder. Não conheço o sistema. Pode ser de novo algo específico do Brasil. Mas você não vê isso em outros países.

Folha - O sr. foi claramente cauteloso durante sua última visita a Atenas em relação aos preparativos para os Jogos. Qual seu nível de preocupação hoje?
Rogge -
Não sou um homem preocupado. Sou um homem focado. Mas eu pressionei para que os gregos estejam prontos na época dos Jogos.

Folha - O sr. disse aos gregos para se concentrarem em questões "vitais" na última fase de trabalho. Algumas pessoas argumentam que Atenas se preocupou demais com grandeza, tetos e mármore e se esqueceu de providenciar coisas básicas. Isso é correto?
Rogge -
Não acho que seja verdade. Atenas não gastou muito em mármore. Mármore é um material comum para construção na Grécia, existe em todo lugar. Não é exótico para eles. As construções que foram feitas são muito boas, mas não demasiadamente luxuosas, tal como deve ser.

Folha - O sr. apontou a segurança como o item mais importantes para as candidatas aos Jogos de 2012. Isso significa apenas terrorismo ou também violência urbana?
Rogge -
Segurança é muito mais que terrorismo. É basicamente tudo o que afeta a segurança dos Jogos. Poderia ser a questão das condições sanitárias, que você não tenha envenenamento da comida. Claro, também a violência urbana. Há ainda transporte, [o fato de haver] boas instalações que não vão ruir, a integridade do sistema elétrico, porque sem eletricidade você fica sem muitas coisas de segurança.

Folha - O sr. disse que é preciso levar os Jogos para a América do Sul e para a África. Por outro lado, o sr. apontou que seria uma grande dor-de-cabeça para o COI se os Jogos deste ano tivessem ido para Buenos Aires. Como não há solução visível para os problemas financeiros dessas regiões, o sr. crê que elas terão que esperar mais pelos Jogos?
Rogge -
A estabilidade financeira é, claro, um dos elementos que consideramos ao dar os Jogos. É um dos aspectos importantes. Mais do que isso, não posso elaborar, nós estamos estudando esses arquivos enviados pelos candidatos, e vamos julgar se consideramos que têm suficiente estabilidade financeira ou não.

Folha - O Qatar é o último de uma série de países que querem importar atletas, pagando altas somas para competirem sob suas bandeiras. Qual sua opinião sobre isso?
Rogge -
Há naturalizações legítimas. Quando você muda para outro país para fazer sua vida lá, então a naturalização é totalmente legítima. Por outro lado, se você é um atleta que recebe uma oferta grande de dólares e um passaporte, e você sabe que não vai viver permanentemente naquele país, então é errado. Nós não somos a favor desse sistema que permite a compra de atletas.

Folha - O sr. se diz contrário a convites para atletas irem aos Jogos...
Rogge -
Não, essa é uma das coisas engraçadas que acontecem às vezes. Não disse isso. Pelo contrário: eu inventei o sistema de convites, claro que sou a favor de convites. Porque eles trazem universalidade aos Jogos. Se tivéssemos Jogos baseados apenas em qualidade, então alguns países não poderiam enviar atletas. O que eu digo é que, quando damos convites, precisamos nos assegurar que os atletas tenham qualidade decente básica. O que disse é que nós não queremos ter o exemplo do nadador de Sydney [Eric Moussambani], que teve dificuldade para acabar sua prova.

Folha - Mas o sr. não pensa que, nas lembranças das pessoas, o caso de Moussambani foi uma das grandes histórias de Sydney?
Rogge -
Lamento, mas discordo. Os Jogos são uma questão de qualidade, de mostrar habilidade e bons atletas. Não têm relação com um incidente cômico.

Folha - Muitos atletas de ponta não estarão nos Jogos, como Lleyton Hewitt, no tênis, Beckham e Ronaldo, no futebol, e os jogadores americanos de beisebol. O que é preciso para ter todos os melhores nos Jogos?
Rogge -
Se Ronaldo não estará, é porque o seu time perdeu. É uma lei normal do esporte. Para participar dos Jogos, você precisa passar pelos jogos qualificatórios, e o Brasil não pôde fazê-lo. Não há ninguém a culpar a não ser vocês mesmos.

Folha - Mas Ronaldo não podia jogar o Pré-Olímpico...
Rogge -
Se o seu time não foi bom para se classificar sem Ronaldo, vocês têm apenas que culpar a vocês mesmos, não o sistema. Em relação a outros atletas que não vão participar, pior para eles. O torneio de tênis ainda vai ser um grande torneio. [Andy] Roddick estará lá, [Roger] Federer estará lá, o número um e o número dois do mundo. E eu espero que 15 ou 16 dos top 20 estejam lá. Se olhar os campeões passados dos Jogos, você tem vários jogadores com prestígio. A qualidade está lá.


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