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VIVER para contar
Único sobrevivente da final de 1930 aconselha Brasil a ficar unido na Copa da Alemanha
Testemunha de
todos os Mundiais, argentino diz que Domingos da Guia "acabava" com ele
GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL
Francisco Varallo acorda sempre que a bola explode na trave.
É o desfecho de um sonho recorrente, que costuma perturbar
seu sono. Ele avança pelo ataque,
dribla seus marcadores e dispara
um chute açucarado, que por centímetros não estufa a rede.
O protagonista queria que tudo
fosse fantasia, simples delírio de
uma mente já cansada. Trata-se,
contudo, de uma reminiscência,
um lance real que poderia ter dado outro rumo para a decisão da
Copa do Mundo de 1930.
Não deu. Aquele arremate de
Varallo acertou a haste esquerda
da meta uruguaia. Sua Argentina,
que pregava ser franca favorita,
acabou derrotada na final.
"Ainda hoje dói lembrar desse
jogo. Já tentei esquecer, mas não
consigo. O jeito é sofrer mesmo."
Também não há mais companheiros da época para compartilhar memórias ou angústias. Varallo é o único sobrevivente do
embate, segundo registros da
Confederação Sul-Americana de
Futebol. E guarda valiosos ensinamentos que adora transmitir.
O trauma que ainda o incomoda, por exemplo, pode servir de
sobreaviso para a seleção brasileira na caminhada rumo ao hexa.
Apesar do hiato de 76 anos entre
sua participação e o atual Mundial, o ex-atleta acha que tem muito a dizer. "Se você quer saber
quais são as dificuldades que um
time favorito enfrenta numa Copa, posso falar com autoridade."
A exposição que faz a seguir não
é um mero mergulho no passado.
Apesar dos 96 anos, Varallo tem
saúde admirável. Vive na casa que
ergueu 30 anos atrás, nos fundos
de uma lotérica. O estabelecimento comercial localizado em La Plata (cerca de 60 km da capital Buenos Aires) leva seu nome e garante até hoje o sustento da família.
Ele não precisa de enfermeira. A
filha única, Maria Teresa, conta
que o pai toma remédio apenas
para artrose. Pela TV, assiste aos
principais campeonatos nacionais do mundo. Aos domingos,
quando acorda disposto, vai ao
estádio do Gimnasia y Esgrima,
clube onde iniciou a carreira em
1924 e que disputa a divisão principal do Campeonato Argentino.
"Futebol ainda é uma loucura
para mim. Acompanho tudo de
perto. Ninguém viu tantas Copas
quanto eu. Por isso, pode acreditar no que eu vou falar."
Sua análise do elenco comandado por Carlos Alberto Parreira vai
além do já surrado discurso sobre
a eficácia dos quatro atacantes.
"O Brasil realmente faz gols como ninguém, pode ganhar sempre de goleada, mas não é só isso.
A equipe está montada faz tempo,
os jogadores se gostam, estão unidos. Esse é o segredo. Isso define
um time campeão. Veja a Argentina: tem bons atletas, ótimo ataque, só que está desmantelada,
ninguém se entende", explica.
Varallo crê também que o elenco verde-amarelo precisa assumir
a condição de favorito e encarar
as conseqüências.
"Nós, por exemplo, nos sentíamos superiores em 1930. E olha
que o Uruguai era o bicampeão
olímpico. Dizíamos que éramos
os melhores e agüentamos todos
os efeitos. Ninguém podia torcer
para a gente com medo de apanhar. Na final, nossos parentes foram ao estádio com bandeiras do
time adversário", afirma.
Ao ver a seleção atual, elege como favoritos Ronaldinho, que
considera "fascinante", e Ronaldo, "atacante eficiente". Diz que
só sente falta no Brasil de um jogador bastante jovem, pronto para desabrochar no Mundial. "Esse
tipo de craque sempre ajuda."
Ele próprio foi um prodígio.
Aos 17 anos, ergueu sua primeira
taça, ainda na era do amadorismo. Chegou à seleção com 19
anos, jogou por dois meses e conquistou vaga da Copa.
Varallo se recorda dos primeiros chutes -dados no Clube 12
de Octubre, aos 14 anos- com facilidade. Nome dos rivais, detalhes dos jogos, tudo ainda parece
fresco na memória. Ele só não
passa a vida toda a limpo por uma
restrição imposta pela família.
Para evitar o desgaste do pai,
Maria pede para que as entrevistas que concede não durem mais
do que 20 minutos. A conversa
com a Folha, entretanto, perdurou por mais de uma hora. Nem
tanto por insistência do repórter,
mas pelo ritmo alucinante da prosopopéia do ex-jogador.
Sua pedida favorita é recordar a
visita que Carlos Gardel fez à delegação argentina durante a Copa
de 1930. "O maior cantor de tango
da história estava ali, na nossa
frente, apresentando músicas especiais e desejando boa sorte. Foi
um momento fantástico."
Varallo só perde a empolgação
ao falar da final, daquele chute
que acertou a trave e da virada
que até hoje não engoliu.
O Uruguai abriu o placar com
um tento de Pablo Dorado. A Argentina virou, ainda no primeiro
tempo. Carlos Peceulle e Guilhermo Stábille marcaram.
Na etapa final, os visitantes
pressionaram -dois arremates
quase venceram o goleiro Enrique
Ballesteros, um de Varallo-, mas
acabaram dominados. Pedro Cea
empatou, Victoriano Iriarte fez o
terceiro, e Hector Castro marcou
o gol derradeiro. Oitenta mil espectadores celebraram o título no
estádio Centenario, inaugurado
para aquele campeonato.
"Foi um primeiro tempo lindo e
um segundo desastroso. Não sei o
que aconteceu. Já tentei explicar
aquela derrota de todos os jeitos,
mas a verdade é que não sei o que
dizer. Nunca consegui entender."
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