São Paulo, domingo, 23 de abril de 2006

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VIVER para contar

Único sobrevivente da final de 1930 aconselha Brasil a ficar unido na Copa da Alemanha

Testemunha de todos os Mundiais, argentino diz que Domingos da Guia "acabava" com ele


GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL

Francisco Varallo acorda sempre que a bola explode na trave.
É o desfecho de um sonho recorrente, que costuma perturbar seu sono. Ele avança pelo ataque, dribla seus marcadores e dispara um chute açucarado, que por centímetros não estufa a rede.
O protagonista queria que tudo fosse fantasia, simples delírio de uma mente já cansada. Trata-se, contudo, de uma reminiscência, um lance real que poderia ter dado outro rumo para a decisão da Copa do Mundo de 1930.
Não deu. Aquele arremate de Varallo acertou a haste esquerda da meta uruguaia. Sua Argentina, que pregava ser franca favorita, acabou derrotada na final.
"Ainda hoje dói lembrar desse jogo. Já tentei esquecer, mas não consigo. O jeito é sofrer mesmo."
Também não há mais companheiros da época para compartilhar memórias ou angústias. Varallo é o único sobrevivente do embate, segundo registros da Confederação Sul-Americana de Futebol. E guarda valiosos ensinamentos que adora transmitir.
O trauma que ainda o incomoda, por exemplo, pode servir de sobreaviso para a seleção brasileira na caminhada rumo ao hexa. Apesar do hiato de 76 anos entre sua participação e o atual Mundial, o ex-atleta acha que tem muito a dizer. "Se você quer saber quais são as dificuldades que um time favorito enfrenta numa Copa, posso falar com autoridade."
A exposição que faz a seguir não é um mero mergulho no passado. Apesar dos 96 anos, Varallo tem saúde admirável. Vive na casa que ergueu 30 anos atrás, nos fundos de uma lotérica. O estabelecimento comercial localizado em La Plata (cerca de 60 km da capital Buenos Aires) leva seu nome e garante até hoje o sustento da família.
Ele não precisa de enfermeira. A filha única, Maria Teresa, conta que o pai toma remédio apenas para artrose. Pela TV, assiste aos principais campeonatos nacionais do mundo. Aos domingos, quando acorda disposto, vai ao estádio do Gimnasia y Esgrima, clube onde iniciou a carreira em 1924 e que disputa a divisão principal do Campeonato Argentino.
"Futebol ainda é uma loucura para mim. Acompanho tudo de perto. Ninguém viu tantas Copas quanto eu. Por isso, pode acreditar no que eu vou falar."
Sua análise do elenco comandado por Carlos Alberto Parreira vai além do já surrado discurso sobre a eficácia dos quatro atacantes.
"O Brasil realmente faz gols como ninguém, pode ganhar sempre de goleada, mas não é só isso. A equipe está montada faz tempo, os jogadores se gostam, estão unidos. Esse é o segredo. Isso define um time campeão. Veja a Argentina: tem bons atletas, ótimo ataque, só que está desmantelada, ninguém se entende", explica.
Varallo crê também que o elenco verde-amarelo precisa assumir a condição de favorito e encarar as conseqüências.
"Nós, por exemplo, nos sentíamos superiores em 1930. E olha que o Uruguai era o bicampeão olímpico. Dizíamos que éramos os melhores e agüentamos todos os efeitos. Ninguém podia torcer para a gente com medo de apanhar. Na final, nossos parentes foram ao estádio com bandeiras do time adversário", afirma.
Ao ver a seleção atual, elege como favoritos Ronaldinho, que considera "fascinante", e Ronaldo, "atacante eficiente". Diz que só sente falta no Brasil de um jogador bastante jovem, pronto para desabrochar no Mundial. "Esse tipo de craque sempre ajuda."
Ele próprio foi um prodígio. Aos 17 anos, ergueu sua primeira taça, ainda na era do amadorismo. Chegou à seleção com 19 anos, jogou por dois meses e conquistou vaga da Copa.
Varallo se recorda dos primeiros chutes -dados no Clube 12 de Octubre, aos 14 anos- com facilidade. Nome dos rivais, detalhes dos jogos, tudo ainda parece fresco na memória. Ele só não passa a vida toda a limpo por uma restrição imposta pela família.
Para evitar o desgaste do pai, Maria pede para que as entrevistas que concede não durem mais do que 20 minutos. A conversa com a Folha, entretanto, perdurou por mais de uma hora. Nem tanto por insistência do repórter, mas pelo ritmo alucinante da prosopopéia do ex-jogador.
Sua pedida favorita é recordar a visita que Carlos Gardel fez à delegação argentina durante a Copa de 1930. "O maior cantor de tango da história estava ali, na nossa frente, apresentando músicas especiais e desejando boa sorte. Foi um momento fantástico."
Varallo só perde a empolgação ao falar da final, daquele chute que acertou a trave e da virada que até hoje não engoliu.
O Uruguai abriu o placar com um tento de Pablo Dorado. A Argentina virou, ainda no primeiro tempo. Carlos Peceulle e Guilhermo Stábille marcaram.
Na etapa final, os visitantes pressionaram -dois arremates quase venceram o goleiro Enrique Ballesteros, um de Varallo-, mas acabaram dominados. Pedro Cea empatou, Victoriano Iriarte fez o terceiro, e Hector Castro marcou o gol derradeiro. Oitenta mil espectadores celebraram o título no estádio Centenario, inaugurado para aquele campeonato.
"Foi um primeiro tempo lindo e um segundo desastroso. Não sei o que aconteceu. Já tentei explicar aquela derrota de todos os jeitos, mas a verdade é que não sei o que dizer. Nunca consegui entender."


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