São Paulo, sábado, 24 de fevereiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ GERALDO COUTO

A nostalgia da chibata


A popularidade do técnico Emerson Leão em certos meios talvez reflita uma oculta vocação autoritária


CHEGUEI A pensar que fosse implicância minha contra Leão. Fiz um esforço para acreditar no que a maior parte da chamada crônica esportiva dizia: que ele é um dos melhores treinadores do país e que iria "botar ordem" no Corinthians. Pois bem: a desordem no Corinthians só aumentou, e a capacidade de Leão como técnico começa a ser questionada por gente que entende mais de futebol do que eu, como Tostão, Neto e Xico Sá.
Sinto-me, portanto, mais à vontade para dizer o que penso da figura. O que mais me incomoda em Leão é a incapacidade de assumir os próprios erros. A culpa é sempre dos outros: da arbitragem, dos seus atletas, da imprensa. Ele está sempre certo. Alguns leitores e amigos me dizem que ele é um disciplinador, que obriga os jogadores a fazerem jus a seus altos salários. Seria, aliás, por isso que os atletas do Corinthians estariam agora tentando derrubá-lo com suas péssimas atuações.
Ora, se existe um alto salário no Corinthians que não está sendo justificado, é o do próprio Leão. Nas últimas partidas, ele escalou mal o time e foi ainda pior nas substituições. Uma atitude típica sua é, diante de um placar adverso, tirar o único meia de armação do time (Roger, no caso) e escalar mais um atacante. O raciocínio é de um primarismo grosseiro. Precisamos de gols? Coloquemos, então, mais goleadores. A cada dez minutos de desvantagem no marcador, Leão põe mais um atacante em campo. Resultado: um bando de grossos dando chutões atrás, um bando de infelizes esperando na frente uma bola que não vem. Isso é time de futebol?
Não, não falta disposição aos jogadores corintianos. O que falta, para alguns, é qualidade técnica, e para o conjunto, organização. Mas esse é um assunto que Tostão tem tratado com muito mais propriedade. O que me interessa aqui é tentar entender por que Leão enganou tanta gente por tanto tempo. Uma resposta possível foi dada ontem aqui por Xico Sá: Diego, Robinho e cia. deram a ele o título brasileiro de 2002. Leão teve a sorte de ter a melhor geração de talentos surgida na Vila Belmiro nas últimas décadas. Mas desconfio de que a razão da popularidade de Leão em certos meios tenha raízes mais profundas, que nada têm a ver com o futebol.
A idéia de um técnico linha-dura, que bota seus comandados na linha e não tolera nada que seja considerado capricho ou frescura, atende a uma nostalgia oculta dos tempos em que o capataz, de chicote em punho, botava os escravos para trabalhar e produzir sem dar um pio. Ou do tempo em que os militares calavam qualquer dissidência a coronhadas. Frases como "manda esses vagabundos cortar cana pra ver o que é bom" saem da nossa boca de modo tão fácil que decerto devem expressar alguma tara antiga e profunda. É preciso cuidado com essa reprodução automática de velhas mentalidades, de velhas linguagens.
Felipão Scolari tem fama de disciplinador, e eu o critiquei mais de uma vez por elogiar o ditador Pinochet sem conhecer o suficiente a trágica história do Chile. Mas entre Felipão a Leão há enorme distância. Nunca vi o treinador gaúcho tirar o corpo fora e responsabilizar seus jogadores por uma derrota. Nunca o vi perseguir os astros dos times que comandou, sob o pretexto de que precisava fazê-los render.
Leão, sim. No São Paulo, por exemplo, ridicularizou Luizão em público, dizendo que o atacante estava de barriga grande e pernas finas, barrou Júnior e tentou proibir Rogério de bater faltas (foi forçado a se render ao fato de que era o melhor batedor do time). Ao chegar ao Corinthians, apressou a saída de Tevez ao dizer, entre outras coisas, que não gostava de argentinos. Todo mundo tem direito de gostar desse estilo de técnico e de gente. Eu não gosto.

jgcouto@uol.com.br


Texto Anterior: Inadimplente: Rio não pode receber verba
Próximo Texto: Basquete do Brasil vira fornecedor do Oriente Médio
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.