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OPINIÃO
Às vésperas do Mundial, cresce união na África
Em artigo, Bono, do U2, aponta maior
diálogo entre empresários e ativistas
BONO
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"
PASSEI O mês de março
com uma delegação de
ativistas, empresários e
especialistas em visita ao oeste,
sul e leste da África, tentando
ao máximo escutar o que é sempre difícil para um irlandês falastrão. Com a boca selada por
fita adesiva, consegui distinguir
algumas linhas melódicas interessantes em toda a parte, dos
palácios aos pavimentos.
A despeito do rugido quase
ensurdecedor de entusiasmo
quanto à realização da Copa do
Mundo de futebol na África,
dentro de algumas semanas,
conseguimos ouvir algo de surpreendente. Harmonia... fluindo de duas alas que no passado
foram frequentemente discordantes: a classe empresarial
emergente da África e os ativistas de sua sociedade civil.
A sociedade civil em regra vê
o mundo dos negócios como,
bem, nem tão civil. O mundo
dos negócios tende a ver os ativistas como, bem, talvez um
pouco ativos demais.
Mas na África, ao menos pelo
que vi, isso está começando a
mudar. A energia dessas forças
oponentes, unida, está enchendo escritórios, salas de diretoria e bares. O motivo é que os
dois grupos, setor privado e sociedade civil, veem as falhas de
governança como o maior obstáculo a superar. Por isso, trabalham juntos para redefinir as
regras do jogo na África.
Os empresários sabem que
mesmo um bom relacionamento com um mau governo bloqueia investimentos. A sociedade sabe que um país rico em
recursos naturais pode ter mais
(e não menos) problemas, se a
corrupção não for banida.
Essa união de forças está sendo propelida por algumas personalidades luminosas, que
merecem ser conhecidas. Permita-me apresentar a você alguns dos catalisadores.
John Githongo, o famoso
carrasco da corrupção no Quênia, teve de sair do país às pressas uma ou duas vezes; foi contratado por seu governo para
colocar as coisas em ordem e
executou bem demais a tarefa.
Agora, criou um grupo chamado Inuka, que aproxima os
pobres urbanos dos líderes empresariais, criando alianças comunitárias interétnicas para
combater a pobreza e manter a
vigilância sobre governos locais
dúbios. Ele é o tipo de líder que
oferece a muitos quenianos esperança, a despeito da instabilidade do governo de coalizão.
Dividindo uma mesa com Githongo e eu em Nairóbi, estava
DJ Rowbow, um sósia de Mike
Tyson. A rádio dele, Ghetto Radio, serviu como voz da razão
quando da erupção de um vulcão de tensões étnicas no Quênia, em 2008. Enquanto algumas vozes encorajavam os moradores de Kibera, uma das
maiores favelas da África, a atacar, esse homem decodificou a
desinformação e fez o papel de
promotor da paz e interlocutor.
No repertório da rádio, Bob
Marley divide espaço com um
divertido reggae local que combina Clash e Marvin Gaye.
A única mentira que ele disse
durante toda aquela noite foi
que gostava do U2. De minha
parte, eu talvez tenha exagerado nas menções a Jay-Z e Beyoncé. "São meus amigos."
Sei que esse é o tipo de coisa
que você espera que eu diga,
mas afirmo mesmo assim que o
melhor exemplo das novas regras é oferecido por um músico
do Senegal. Youssou N'Dour,
talvez o maior cantor do planeta, é dono de um jornal e está no
meio de uma complicada negociação para adquirir uma estação de TV. Sua estratégia e sua
determinação férrea são perceptíveis. Ele está criando a trilha sonora da mudança e sabe
exatamente como usar sua voz.
(Tentei imaginar como seria se
eu fosse dono do "New York Times" e, digamos, da rede NBC.
Um dia. Um dia...)
Em Maputo, Moçambique,
conheci o Activa, um grupo feminino que, entre outras coisas, ajuda empresários a obter
capital. O setor privado e o público se combinam com facilidade ali, sob a liderança de Luisa Diogo, antiga primeira-ministra do país e agora a matriarca dessa porção fascinante do
leste da África. Famosa por seu
penteado Guerra nas Estrelas e
conhecimento político, tem a
energia leonina de uma Ellen
Johnson Sirleaf, Ngozi Okonjo-Iweala ou Graça Machel.
Quando conversei com Diogo e seu grupo, as mulheres menos famosas presentes se queixaram dos juros altos demais
em suas operações de microcrédito e da falta do que definem como "integração econômica regional".
Para elas, a infraestrutura
continua a ser o maior problema. "Estradas, precisamos de
estradas", disse uma empresária, ao falar sobre a solução para
os obstáculos que enfrenta. Hoje, acrescentou, "nós, mulheres, somos as estradas". Eu jamais havia pensado na questão
nesses termos, mas, já que as
mulheres respondem pela
maior parte da agricultura, são
elas que transportam os produtos a mercados, recolhem água
e levam doentes às clínicas.
O verdadeiro astro da viagem foi um furacão humano, Mo
Ibrahim, um empresário sudanês que fez fortuna com a telefonia móvel.
Fantasiei sobre ser o garoto
prodígio para o Batman dele,
mas enquanto percorríamos
juntos o continente percebi rapidamente que o meu papel era
o de Alfred, o mordomo. Onde
quer que fôssemos, eu era tirado do caminho pelos jovens e
velhos que queriam conversar
com o empresário reformista,
um verdadeiro astro do rock, e
sua linda e assustadoramente
inteligente filha Hadeel, que dirige a fundação de Mo e se parece muito com o pai (mas vestida
por Alexander McQueen).
Os discursos de Mo sempre
são aplaudidos de pé. Na Universidade de Gana, parecia um
boxeador, tirando a gravata e o
paletó, e abrindo caminho a socos para o futuro.
Uma das ideias inspiradas de
Mo, o Ibrahim Prize, é uma generosa dotação para os líderes
africanos que sirvam bem ao
seu povo e, um detalhe crucial,
deixem os cargos quando deveriam. Mo diagnosticou um problema que ele define como
"terceiro mandatismo", que leva presidentes, temendo uma
vida de pobreza depois de deixarem o poder, a tentar acumular patrimônio pessoal no final
de seus mandatos.
Por isso, Mo decidiu que era
preciso oferecer a eles uma
oportunidade de aterrissar
confortavelmente. (Ele não se
concentra no plano individual.
O Índice Ibrahim avalia países
por qualidade de governo.)
Mo fuma cachimbo e se refere a todos como "gente". "Olha,
gente, se vocês mesmos criaram esses problemas, também
têm de criar as soluções."
Ou, falando comigo, "olha,
gente, se vocês ainda não perceberam, vocês não são africanos". Pois é. E "gente, vocês
americanos são investidores
preguiçosos. Há muito crescimento aqui, mas vocês querem
flutuar nas águas rasas do Dow
Jones ou da Nasdaq".
Ibrahim reserva o mesmo vigor para falar da corrupção ao
norte do Equador que emprega
para falar sobre a corrupção ao
sul da linha e sobre a corrupção
envolvida em fugas ilícitas de
capital, contratos injustos de
mineração, burocracia das organizações assistenciais.
Por isso decidi ouvir. Bom
para mim. Mas será que aprendi mesmo alguma coisa?
Durante muitos dias e noites,
perguntei aos africanos sobre o
rumo que o ativismo internacional deveria tomar. Seria melhor desistirmos e voltarmos
para casa? Alguns concordaram. Mas o número de "nãos"
foi muito maior. Antevejo o fim
do relacionamento usual entre
doador e beneficiário.
A assistência internacional continua a ser parte do quadro.
É crucial, se você é portador do
HIV e está lutando pela vida, ou
se é uma mãe imaginando por
que não é possível proteger
seus filhos contra matadores de
nome impronunciável, ou se
você é um agricultor que sabe
que novas variedades de sementes significam que disporá
de produtos para levar ao mercado mesmo nas estações de seca e inundação.
Mas não a mesma velha assistência como único recurso.
Assistência mais inteligente,
programada para se eliminar
da equação dentro de uma geração ou dias.
"Tornar a assistência coisa
do passado" é o objetivo. Sempre foi. Porque, quando a assistência acabar, isso significará
que a pobreza extrema ficou no
passado. Mas até que chegue
esse dia glorioso, assistência inteligente pode servir como ferramenta de reforma, para exigir prestação de contas e transparência, recompensar os resultados mensuráveis, reforçar
o Estado de Direito, mas sem
imaginar mesmo por um segundo que ela serve como substituto para o comércio internacional, o investimento ou a autodeterminação.
Eu, por exemplo, gostaria de
estar vivo para ver a previsão
que Mo Ibrahim fez com relação a Gana. "É, gente", ele disse.
"Gana precisará de apoio nos
próximos anos, mas em um futuro não muito distante estará
prestando assistência, em lugar
de recebê-la. E você, sr. Bono,
só visitará o país nas férias."
É uma passagem que pretendo reservar.
Na África do Sul, com Madiba, o grande Nelson Mandela,
homem que, em companhia de
Desmond Tutu e The Edge, eu
considero como meu chefe,
propus a questão da integração
regional pelo Banco de Desenvolvimento Africano e a necessidade de investimento real em
infraestrutura, todos os lemas
habituais. Enquanto Madiba
sorria, fiz uma nota mental
quanto a nunca falar dessas coisas no bar ou diante da banda.
"E você, não vai à Copa do
Mundo?", provocou o grande
homem, mudando de assunto,
já acostumado a ver o tipo de fanatismo que eu estava exibindo. "Você está ficando velho e
vai perder o grande baile da
maioridade africana." O homem que já se sentia livre antes
de libertado continua a ser o
maior exemplo daquilo que
uma verdadeira liderança pode
realizar apesar das circunstâncias adversas.
BONO, líder e vocalista do U2 e cofundador das
organizações assistenciais ONE e Product Red,
é colaborador do "New York Times".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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