São Paulo, sábado, 24 de abril de 2010

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OPINIÃO

Às vésperas do Mundial, cresce união na África

Em artigo, Bono, do U2, aponta maior diálogo entre empresários e ativistas

BONO
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"

PASSEI O mês de março com uma delegação de ativistas, empresários e especialistas em visita ao oeste, sul e leste da África, tentando ao máximo escutar o que é sempre difícil para um irlandês falastrão. Com a boca selada por fita adesiva, consegui distinguir algumas linhas melódicas interessantes em toda a parte, dos palácios aos pavimentos.
A despeito do rugido quase ensurdecedor de entusiasmo quanto à realização da Copa do Mundo de futebol na África, dentro de algumas semanas, conseguimos ouvir algo de surpreendente. Harmonia... fluindo de duas alas que no passado foram frequentemente discordantes: a classe empresarial emergente da África e os ativistas de sua sociedade civil.
A sociedade civil em regra vê o mundo dos negócios como, bem, nem tão civil. O mundo dos negócios tende a ver os ativistas como, bem, talvez um pouco ativos demais.
Mas na África, ao menos pelo que vi, isso está começando a mudar. A energia dessas forças oponentes, unida, está enchendo escritórios, salas de diretoria e bares. O motivo é que os dois grupos, setor privado e sociedade civil, veem as falhas de governança como o maior obstáculo a superar. Por isso, trabalham juntos para redefinir as regras do jogo na África.
Os empresários sabem que mesmo um bom relacionamento com um mau governo bloqueia investimentos. A sociedade sabe que um país rico em recursos naturais pode ter mais (e não menos) problemas, se a corrupção não for banida.
Essa união de forças está sendo propelida por algumas personalidades luminosas, que merecem ser conhecidas. Permita-me apresentar a você alguns dos catalisadores.
John Githongo, o famoso carrasco da corrupção no Quênia, teve de sair do país às pressas uma ou duas vezes; foi contratado por seu governo para colocar as coisas em ordem e executou bem demais a tarefa.
Agora, criou um grupo chamado Inuka, que aproxima os pobres urbanos dos líderes empresariais, criando alianças comunitárias interétnicas para combater a pobreza e manter a vigilância sobre governos locais dúbios. Ele é o tipo de líder que oferece a muitos quenianos esperança, a despeito da instabilidade do governo de coalizão.
Dividindo uma mesa com Githongo e eu em Nairóbi, estava DJ Rowbow, um sósia de Mike Tyson. A rádio dele, Ghetto Radio, serviu como voz da razão quando da erupção de um vulcão de tensões étnicas no Quênia, em 2008. Enquanto algumas vozes encorajavam os moradores de Kibera, uma das maiores favelas da África, a atacar, esse homem decodificou a desinformação e fez o papel de promotor da paz e interlocutor. No repertório da rádio, Bob Marley divide espaço com um divertido reggae local que combina Clash e Marvin Gaye.
A única mentira que ele disse durante toda aquela noite foi que gostava do U2. De minha parte, eu talvez tenha exagerado nas menções a Jay-Z e Beyoncé. "São meus amigos."
Sei que esse é o tipo de coisa que você espera que eu diga, mas afirmo mesmo assim que o melhor exemplo das novas regras é oferecido por um músico do Senegal. Youssou N'Dour, talvez o maior cantor do planeta, é dono de um jornal e está no meio de uma complicada negociação para adquirir uma estação de TV. Sua estratégia e sua determinação férrea são perceptíveis. Ele está criando a trilha sonora da mudança e sabe exatamente como usar sua voz. (Tentei imaginar como seria se eu fosse dono do "New York Times" e, digamos, da rede NBC. Um dia. Um dia...)
Em Maputo, Moçambique, conheci o Activa, um grupo feminino que, entre outras coisas, ajuda empresários a obter capital. O setor privado e o público se combinam com facilidade ali, sob a liderança de Luisa Diogo, antiga primeira-ministra do país e agora a matriarca dessa porção fascinante do leste da África. Famosa por seu penteado Guerra nas Estrelas e conhecimento político, tem a energia leonina de uma Ellen Johnson Sirleaf, Ngozi Okonjo-Iweala ou Graça Machel.
Quando conversei com Diogo e seu grupo, as mulheres menos famosas presentes se queixaram dos juros altos demais em suas operações de microcrédito e da falta do que definem como "integração econômica regional".
Para elas, a infraestrutura continua a ser o maior problema. "Estradas, precisamos de estradas", disse uma empresária, ao falar sobre a solução para os obstáculos que enfrenta. Hoje, acrescentou, "nós, mulheres, somos as estradas". Eu jamais havia pensado na questão nesses termos, mas, já que as mulheres respondem pela maior parte da agricultura, são elas que transportam os produtos a mercados, recolhem água e levam doentes às clínicas.
O verdadeiro astro da viagem foi um furacão humano, Mo Ibrahim, um empresário sudanês que fez fortuna com a telefonia móvel.
Fantasiei sobre ser o garoto prodígio para o Batman dele, mas enquanto percorríamos juntos o continente percebi rapidamente que o meu papel era o de Alfred, o mordomo. Onde quer que fôssemos, eu era tirado do caminho pelos jovens e velhos que queriam conversar com o empresário reformista, um verdadeiro astro do rock, e sua linda e assustadoramente inteligente filha Hadeel, que dirige a fundação de Mo e se parece muito com o pai (mas vestida por Alexander McQueen).
Os discursos de Mo sempre são aplaudidos de pé. Na Universidade de Gana, parecia um boxeador, tirando a gravata e o paletó, e abrindo caminho a socos para o futuro.
Uma das ideias inspiradas de Mo, o Ibrahim Prize, é uma generosa dotação para os líderes africanos que sirvam bem ao seu povo e, um detalhe crucial, deixem os cargos quando deveriam. Mo diagnosticou um problema que ele define como "terceiro mandatismo", que leva presidentes, temendo uma vida de pobreza depois de deixarem o poder, a tentar acumular patrimônio pessoal no final de seus mandatos.
Por isso, Mo decidiu que era preciso oferecer a eles uma oportunidade de aterrissar confortavelmente. (Ele não se concentra no plano individual.
O Índice Ibrahim avalia países por qualidade de governo.)
Mo fuma cachimbo e se refere a todos como "gente". "Olha, gente, se vocês mesmos criaram esses problemas, também têm de criar as soluções."
Ou, falando comigo, "olha, gente, se vocês ainda não perceberam, vocês não são africanos". Pois é. E "gente, vocês americanos são investidores preguiçosos. Há muito crescimento aqui, mas vocês querem flutuar nas águas rasas do Dow Jones ou da Nasdaq".
Ibrahim reserva o mesmo vigor para falar da corrupção ao norte do Equador que emprega para falar sobre a corrupção ao sul da linha e sobre a corrupção envolvida em fugas ilícitas de capital, contratos injustos de mineração, burocracia das organizações assistenciais.
Por isso decidi ouvir. Bom para mim. Mas será que aprendi mesmo alguma coisa?
Durante muitos dias e noites, perguntei aos africanos sobre o rumo que o ativismo internacional deveria tomar. Seria melhor desistirmos e voltarmos para casa? Alguns concordaram. Mas o número de "nãos" foi muito maior. Antevejo o fim do relacionamento usual entre doador e beneficiário.
A assistência internacional continua a ser parte do quadro.
É crucial, se você é portador do HIV e está lutando pela vida, ou se é uma mãe imaginando por que não é possível proteger seus filhos contra matadores de nome impronunciável, ou se você é um agricultor que sabe que novas variedades de sementes significam que disporá de produtos para levar ao mercado mesmo nas estações de seca e inundação.
Mas não a mesma velha assistência como único recurso.
Assistência mais inteligente, programada para se eliminar da equação dentro de uma geração ou dias.
"Tornar a assistência coisa do passado" é o objetivo. Sempre foi. Porque, quando a assistência acabar, isso significará que a pobreza extrema ficou no passado. Mas até que chegue esse dia glorioso, assistência inteligente pode servir como ferramenta de reforma, para exigir prestação de contas e transparência, recompensar os resultados mensuráveis, reforçar o Estado de Direito, mas sem imaginar mesmo por um segundo que ela serve como substituto para o comércio internacional, o investimento ou a autodeterminação. Eu, por exemplo, gostaria de estar vivo para ver a previsão que Mo Ibrahim fez com relação a Gana. "É, gente", ele disse. "Gana precisará de apoio nos próximos anos, mas em um futuro não muito distante estará prestando assistência, em lugar de recebê-la. E você, sr. Bono, só visitará o país nas férias."
É uma passagem que pretendo reservar.
Na África do Sul, com Madiba, o grande Nelson Mandela, homem que, em companhia de Desmond Tutu e The Edge, eu considero como meu chefe, propus a questão da integração regional pelo Banco de Desenvolvimento Africano e a necessidade de investimento real em infraestrutura, todos os lemas habituais. Enquanto Madiba sorria, fiz uma nota mental quanto a nunca falar dessas coisas no bar ou diante da banda.
"E você, não vai à Copa do Mundo?", provocou o grande homem, mudando de assunto, já acostumado a ver o tipo de fanatismo que eu estava exibindo. "Você está ficando velho e vai perder o grande baile da maioridade africana." O homem que já se sentia livre antes de libertado continua a ser o maior exemplo daquilo que uma verdadeira liderança pode realizar apesar das circunstâncias adversas.


BONO, líder e vocalista do U2 e cofundador das organizações assistenciais ONE e Product Red, é colaborador do "New York Times".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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