São Paulo, segunda-feira, 24 de junho de 2002

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TURISTA OCIDENTAL

Ruas de Nagarekawa escancaram a aversão aos americanos e expõem sequelas de uma bomba atômica

HIROSHIMA MON AMOUR

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A HIROSHIMA

Uma atitude intriga os novatos que se aventuram pelo bairro boêmio de Nagarekawa, em Hiroshima, no começo da madrugada de ontem. As dezenas de mulheres e homens que distribuem folhetos anunciando de clubes com música pop a bares de prostituição ignoram quem não aparenta ser japonês.
Arranhando palavras em inglês, uma garota esclarece: ""American no". Ao ver a credencial de cobertura jornalística da Copa indicando o Brasil como origem, vem o acréscimo: "Então, ok".
Outro ""propagandista" repete: norte-americanos não são bem-vindos. Em trajes civis coloridos, um soldado se identifica como Luck, 25, e diz ser do Estado do Colorado. Ele confirma a barração generalizada. Dois colegas seus, que não informam nem o primeiro nome, afirmam ter 20 e 26 anos e vir da Califórnia. Resmungam que não sentem falta de locais onde não os querem.
Os três aproveitam a folga da base militar dos EUA em Iwakuni, 40 quilômetros ao sul de Hiroshima, onde estão estacionados cerca de 5.000 marines.
Há uma segunda surpresa: o motivo do veto aos americanos, asseguram leões-de-chácara, não é o indisfarçável ressentimento pela primeira bomba atômica lançada contra alvos humanos.
Às 8h15 do dia 6 de agosto de 1945, um bombardeiro B-29 despejou um artefato que explodiu a 580 metros do solo da cidade japonesa. Num raio de dois quilômetros, tudo foi incendiado.
Em cinco anos, contando os que morreram na hora e das queimaduras e efeitos prolongados da radiação, houve 200 mil vítimas, mais da metade da população da época. Ainda no ano passado houve mortes por câncer cuja origem foi 57 anos atrás.
Hiroshima se transformou em símbolo do horror nuclear. Três dias depois de ser atacada, foi a vez de Nagasaki. O Japão, aliado de Alemanha e Itália na Segunda Guerra (1939-1945), se rendeu.
""O problema com os americanos não é esse, antigo, mas o fato de eles arrumarem encrenca onde chegam", diz o brasileiro Wagner Ioshiu, 20, operário numa fábrica de autopeças, concordando com os leões-de-chácara.
Rejeitados, os militares de Iwakuni acabam frequentando clubes latinos. No brasileiro Hot Gin, dezenas dançam pop americano, forró e axé. Garotas japonesas disputam soldados na noite. Há um evidente esforço de mimetizar o comportamento e os modismos dos EUA, país em relação ao qual o sentimento aqui varia do amor ao ódio.
Apesar da ocidentalização do Japão, em especial dos jovens, o abismo cultural com a Europa e os EUA é considerável. Certas diferenças foram abordadas em 1959 pelo cineasta francês Alain Resnais no clássico ""Hiroshima, mon amour" (""Hiroshima, meu amor"). O filme narra o caso amoroso entre uma atriz francesa e um arquiteto japonês passado na cidade da bomba.
Além de mostrar contrastes de cultura, a película tem contundente conteúdo antinuclear.
Na manhã de domingo, a impressão da madrugada é reforçada no Parque Memorial da Paz, na região próxima ao centro da explosão: Hiroshima (882 km a sudoeste de Tóquio) expõe suas chagas, não quer esquecê-las, contudo está longe de viver de luto e a chorar o passado.
Músicos cantam rock em inglês e japonês para ganhar uns trocados. Colegiais usam minissaias curtíssimas até para padrões brasileiros -são compridas, mas ao sair de casa e da escola (às vezes no domingo) elas colam as barras.
Num extremo do parque fica um prédio com uma cúpula onde funcionava um escritório da Prefeitura de Hiroshima. A bomba explodiu a uma distância horizontal de 160 metros. As ruínas permanecem como em 1945.
Voluntários passam um abaixo-assinado pró-eliminação dos arsenais nucleares e exibem cópias de jornais velhos com imagens de pessoas sem pele. ""É para a juventude se lembrar", diz o tradutor Zengeo Inuzuka, 49. ""O perigo é a forte influência dos EUA."
Conversando em espanhol com turistas panamenhos, Inuzuka alterna relatos históricos com comentários sobre a Copa. O restaurante Poco a Poco, a 15 metros, passa um estranho compacto do jogo Coréia x Espanha, sem replay dos lances em que o árbitro prejudicou a "Fúria".
No Museu da Paz, o silêncio sepulcral só é quebrado pela tristíssima trilha sonora de um vídeo e por soluços de visitantes emocionados. É um lugar deprimente, talvez como os campos de concentração do holocausto preservados como encontrados.
A exposição tem relógios de mortos com a hora -8h15- em que pararam. Lembra que milhares de vítimas eram coreanos que cumpriam trabalhos forçados em fábricas japonesas.
Entre as fotos mais impressionantes estão as das sombras formadas no chão por pessoas que se desintegraram. De queimados e deformados. De cadáveres feito múmias. De crianças que perderam o cabelo devido à radiação.
Do lado de fora, há um monumento em homenagem à menina Sadako Sassaki.
Ela tinha dois anos em 1945. Começou a sofrer os efeitos da radiação aos 12. Com leucemia, ouviu que fazer mil dobraduras de papel (origamis) de um pássaro (Tsuru) poderia lhe dar vida longa. Ela fez centenas, mas morreu antes dos mil. Colegas de escola terminaram a tarefa. Sadako foi cremada com seus pássaros.
Até hoje, estudantes de todo o Japão enviam milhões de origamis por ano para o Parque da Paz.



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