São Paulo, sábado, 24 de outubro de 2009

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JOSÉ GERALDO COUTO

A mão de Deus, os pés do homem


"Maradona by Kusturica" revela o craque como um exemplo vivo da grandeza e das contradições humanas


"DEUS É O ÚNICO ser que, para reinar, não precisa nem mesmo existir."
A frase de Baudelaire aparece na tela na abertura do documentário "Maradona by Kusturica", em exibição na 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
A ideia de Deus percorre, de maneira explícita ou subterrânea, o extraordinário filme que o sérvio Emir Kusturica dedicou ao craque. E não me refiro aos lunáticos argentinos que consideram o próprio Diego Maradona uma divindade, com direito a seita própria (a inacreditável Igreja Maradoniana), mas sim à concepção de que um deus caprichoso conduz os destinos humanos como quem manipula fantoches num teatro.
A "mano de Diós", à qual o jogador atribuiu seu célebre gol ilegal contra a Inglaterra, parece ter pinçado ao acaso na proletária Villa Fiorito um menino pobre, mestiço de branco e índio, igual a tantos outros, para viver um enredo único e ao mesmo tempo exemplar, um misto de epopeia, tragédia e farsa que colocaria a nu a grandeza e a fragilidade dessa estranha espécie, o Homo sapiens.
O mais interessante é que Maradona se vê, ele próprio, como esse joguete de Deus, como se sua vida fosse um campo de provas, um laboratório de experiências sobre as contradições humanas.
Há momentos extremamente tocantes no documentário, como aquele em que o craque afirma que não aproveitou a infância de suas filhas porque estava sempre drogado. "Nos aniversários, por exemplo, eu ficava um pouquinho e logo saía para me drogar. Não curtia a festa, a alegria delas. Que idiota eu fui de perder isso."
E, ao narrar o momento em que quase morreu após colapso cardíaco, ele diz que foi como se "a mão de Deus" (sempre ela) o tivesse puxado pelos cabelos do fundo de um poço.
Ele soube depois que, quando estava inconsciente, no hospital, sua filha Giannina segurou-o pelos ombros, dizendo: "Papá, no te vas a morir, hijo de puta. Tienes que seguir viviendo para estar conmigo". Não foi a mão de Deus, portanto, mas a da filha, que o manteve vivo.
Mas vai saber... Idolatrado e idólatra (Che e Fidel estão tatuados em seu corpo), rebelde e falastrão, sentimental e histriônico, Maradona tem consciência de ser um ator, e diz isso a Kusturica. Desde criança, fazendo malabarismos inconcebíveis com a bola, ele esteve diante das câmeras. É isso o que mais impressiona no filme: tudo está registrado, dos gols fabulosos às detenções, das brigas de rua às internações hospitalares. A certa altura, Kusturica pergunta ao craque que ator ele gostaria de ser. Maradona não hesita e diz que é Robert De Niro em "Touro Indomável", o filme de Scorsese que é uma história de glória, queda e redenção. "A diferença é que ele queria destruir tudo, e eu queria fazer gols."
Sim, para isso Maradona veio ao mundo. E, quando vemos os gols que marcou e os que deu aos companheiros, quando vemos os prodígios que fez com a bola nos pés, percebemos que tudo faz sentido e concordamos com Caetano Veloso em que "a coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o sol".
Gracias, Kusturica.
Gracias, Diego.

jgcouto@uol.com.br


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