|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Paixões nacionais
União de futebol e mulheres leva até o machão mais empedernido a admirar leveza das moças com a bola nos pés
NELSON MOTTA
COLUNISTA DA FOLHA
Sempre detestei a expressão
"futebol é jogo pra homem",
machismo usado para justificar
toda sorte de violência e deslealdade contra o adversário e
contra o próprio jogo.
No meu imaginário carioca,
acostumado às peladas de
praias e às redes de vôlei, aos
surfistas e às garotas de biquíni,
nunca houve incompatibilidade entre o futebol e as meninas,
pelo contrário, parecia uma
combinação bem excitante para um adolescente nos anos 60.
Nos anos 70, ouvia-se falar,
mas pouca gente viu jogar, o
Radar, um legendário time feminino de futebol de praia, que
chegou até a fazer excursões à
Europa, mas acabou por falta
de adversárias.
No início dos anos 80, morando em Roma, fui ver um jogo pelo campeonato europeu
entre Itália e Suécia, no estádio
Flamínio. O primeiro futebol
de mulheres é como um sutiã
que não se esquece.
Levado pelo machistinha que
vive nas profundezas até dos
mais liberais, fui para o estádio
menos pelo jogo e mais pela
fantasia de belas mulheres de
corpos atléticos, correndo, chutando e se chocando no gramado, brigando por uma bola -como se ela fosse um homem. Afinal, um Itália e Suécia poderia
ser a final de um concurso de
beleza esportiva européia, pelo
menos teoricamente.
No estádio, o jogo era outro.
Nem tão belas, nem tão gostosas, nem dando bola para os homens, mas batendo um bolão.
Rápidas, fortes, algumas muito
habilidosas, as suecas e as italianas faziam um bom jogo e,
como uma atração extra que
também funciona no futebol de
homens, algumas eram até bonitas e tinham belos corpos.
Era um jogo bem diferente do
masculino, menos violento e
mais aberto, como o futebol dos
homens nos anos 60.
Daquela tarde em diante,
aprendi a respeitar e gostar do
futebol feminino. Assisti a muitos jogos na Europa, times profissionais, seleções nacionais,
um esporte como outro qualquer, embora fosse o mais popular do mundo, jogado pelos
seres mais queridos do planeta.
Depois, durante os anos 90,
morei nos Estados Unidos, onde o futebol feminino desfruta
de grande prestígio e uma popularidade avassaladora: é o esporte mais praticado pelas garotas americanas, gerou até a
expressão política "soccer
moms", mães que trabalham e
levam as filhas para jogar futebol, que foram decisivas nas últimas disputas eleitorais.
Eu me roía de inveja dos
americanos que tinham um timaço, uma craque como Mia
Hamm, e eram campeãs olímpicas e mundiais.
Comecei a me apaixonar pela
seleção brasileira na Olimpíada
de Atlanta, quando vi Pretinha
e suas companheiras enfrentando com coragem e talento
seleções muito mais experientes e organizadas. Poucas jogavam realmente bem, algumas
eram fracas, pareciam subnutridas, mesmo as melhores falhavam muito. Mas valia a pena
ver o esforço e a vontade delas,
com certeza haveria um futuro
para o futebol feminino no Brasil. Afinal, não havia nada que
não pudesse ser feito por uma
brasileira que não fosse ruim da
cabeça ou doente do pé.
Muita bola passou por debaixo das pernas, veio uma nova
geração de jogadoras, as melhores foram jogar em times profissionais europeus e, 11 anos
depois, tenho a alegria de ver
concretizado o que em Atlanta
me parecia um sonho quase impossível.
Ninguém mais pode reclamar que lhes falta técnica, ou
força, ou velocidade, ou disciplina tática, ou talento individual. Mesmo os mais empedernidos machões da crônica esportiva se renderam à graça do
futebol das garotas e estão empolgados com as sensacionais
performances de Marta, Rosana, Cristina, Daniela e, ainda e
sempre, da veterana Pretinha.
Elas têm muitas das qualidades e até alguns dos defeitos
dos craques machos: paradoxalmente, jogaram de salto alto
o primeiro tempo contra o México, fizeram firulas e dribles
desnecessários, abusaram do
individualismo, não marcaram
e só melhoraram e ganharam
no segundo tempo.
Mas quem resistiria, com um
saldo de 26 gols em 4 partidas,
média de 6,5 por jogo? Jamais a
seleção masculina, nem em
suas fases de maior glória, sonhou com esses números.
Mas já passou, as meninas já
desceram do salto e voltaram às
chuteiras, hoje vão jogar a sério
contra suas arqui-rivais, até
aqui quase imbatíveis. Mas,
aconteça o que acontecer, depois do que esse time já fez, milhares, milhões de garotas brasileiras vão encontrar no futebol um esporte, uma diversão e
até um meio de vida. E mais
uma forma de dar alegria e orgulho aos brasileiros.
Texto Anterior: Vela: Jordão vence regata ainda com colar Próximo Texto: Painel FC Índice
|