São Paulo, quinta-feira, 26 de julho de 2007

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Paixões nacionais

União de futebol e mulheres leva até o machão mais empedernido a admirar leveza das moças com a bola nos pés

NELSON MOTTA
COLUNISTA DA FOLHA

Sempre detestei a expressão "futebol é jogo pra homem", machismo usado para justificar toda sorte de violência e deslealdade contra o adversário e contra o próprio jogo.
No meu imaginário carioca, acostumado às peladas de praias e às redes de vôlei, aos surfistas e às garotas de biquíni, nunca houve incompatibilidade entre o futebol e as meninas, pelo contrário, parecia uma combinação bem excitante para um adolescente nos anos 60.
Nos anos 70, ouvia-se falar, mas pouca gente viu jogar, o Radar, um legendário time feminino de futebol de praia, que chegou até a fazer excursões à Europa, mas acabou por falta de adversárias.
No início dos anos 80, morando em Roma, fui ver um jogo pelo campeonato europeu entre Itália e Suécia, no estádio Flamínio. O primeiro futebol de mulheres é como um sutiã que não se esquece.
Levado pelo machistinha que vive nas profundezas até dos mais liberais, fui para o estádio menos pelo jogo e mais pela fantasia de belas mulheres de corpos atléticos, correndo, chutando e se chocando no gramado, brigando por uma bola -como se ela fosse um homem. Afinal, um Itália e Suécia poderia ser a final de um concurso de beleza esportiva européia, pelo menos teoricamente.
No estádio, o jogo era outro. Nem tão belas, nem tão gostosas, nem dando bola para os homens, mas batendo um bolão. Rápidas, fortes, algumas muito habilidosas, as suecas e as italianas faziam um bom jogo e, como uma atração extra que também funciona no futebol de homens, algumas eram até bonitas e tinham belos corpos. Era um jogo bem diferente do masculino, menos violento e mais aberto, como o futebol dos homens nos anos 60.
Daquela tarde em diante, aprendi a respeitar e gostar do futebol feminino. Assisti a muitos jogos na Europa, times profissionais, seleções nacionais, um esporte como outro qualquer, embora fosse o mais popular do mundo, jogado pelos seres mais queridos do planeta.
Depois, durante os anos 90, morei nos Estados Unidos, onde o futebol feminino desfruta de grande prestígio e uma popularidade avassaladora: é o esporte mais praticado pelas garotas americanas, gerou até a expressão política "soccer moms", mães que trabalham e levam as filhas para jogar futebol, que foram decisivas nas últimas disputas eleitorais.
Eu me roía de inveja dos americanos que tinham um timaço, uma craque como Mia Hamm, e eram campeãs olímpicas e mundiais.
Comecei a me apaixonar pela seleção brasileira na Olimpíada de Atlanta, quando vi Pretinha e suas companheiras enfrentando com coragem e talento seleções muito mais experientes e organizadas. Poucas jogavam realmente bem, algumas eram fracas, pareciam subnutridas, mesmo as melhores falhavam muito. Mas valia a pena ver o esforço e a vontade delas, com certeza haveria um futuro para o futebol feminino no Brasil. Afinal, não havia nada que não pudesse ser feito por uma brasileira que não fosse ruim da cabeça ou doente do pé.
Muita bola passou por debaixo das pernas, veio uma nova geração de jogadoras, as melhores foram jogar em times profissionais europeus e, 11 anos depois, tenho a alegria de ver concretizado o que em Atlanta me parecia um sonho quase impossível.
Ninguém mais pode reclamar que lhes falta técnica, ou força, ou velocidade, ou disciplina tática, ou talento individual. Mesmo os mais empedernidos machões da crônica esportiva se renderam à graça do futebol das garotas e estão empolgados com as sensacionais performances de Marta, Rosana, Cristina, Daniela e, ainda e sempre, da veterana Pretinha.
Elas têm muitas das qualidades e até alguns dos defeitos dos craques machos: paradoxalmente, jogaram de salto alto o primeiro tempo contra o México, fizeram firulas e dribles desnecessários, abusaram do individualismo, não marcaram e só melhoraram e ganharam no segundo tempo.
Mas quem resistiria, com um saldo de 26 gols em 4 partidas, média de 6,5 por jogo? Jamais a seleção masculina, nem em suas fases de maior glória, sonhou com esses números.
Mas já passou, as meninas já desceram do salto e voltaram às chuteiras, hoje vão jogar a sério contra suas arqui-rivais, até aqui quase imbatíveis. Mas, aconteça o que acontecer, depois do que esse time já fez, milhares, milhões de garotas brasileiras vão encontrar no futebol um esporte, uma diversão e até um meio de vida. E mais uma forma de dar alegria e orgulho aos brasileiros.


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